quinta-feira, 23 de junho de 2016

"INTERIOR", EXPERIÊNCIA DE ESPECTADOR (Parte II)




[Continuando... - A parte I está aqui]

Em “Interior”, há duas velhinhas que se recusam a morrer, interpretadas maravilhosamente por Samya de Lavor e Tatiana Amorim, que captaram as inúmeras velhas que encontramos em nossa trajetória. As modulações de voz, as inflexões de gestos e o fraseado utilizado são claramente oriundos de uma profunda pesquisa que redunda na composição de duas personagens que se dizem avó e neta, mas ora parecem irmãs ou amigas, cheias de cumplicidade e de arengas. Não se sabe bem em que idade estão, embora a neta afirme “ser ainda uma menina” aos 97 anos. A outra, não sabemos ao certo a sua idade. O que se sabe é que, por alguns momentos, até conflito de gerações surgem.

Foto: Divulgação.


De início, o andamento da ação e a movimentação de cena são lentos, como que para mostrar não só a lentidão dos movimentos das velhas senhoras, mas também a morosidade da passagem do tempo para quem viveu tanto que não sabe mais quantos anos passaram. E dentro dessa ideia do tempo que passa e da lentidão da velhice, já se começa falando da morte: uma delas afirma que pensam por aí que ela morreu, inclusive sua neta. A morte como fim na realidade é o começo para um diálogo que remete, a partir de um determinado ponto da peça, a tudo o que se tem ainda para viver. Nesse ponto, as atrizes se transformam, passam de velhas a quase crianças e perguntam ao público o que ainda se tem para viver no futuro. Aqui, pode-se dizer que “Interior” é uma peça otimista, já que deixa na entrelinha a ideia de que nada se acaba com a morte, mas que pessoas e coisas podem viver eternamente na memória e nos registros materiais em que essa memória encontra lugar: fotografias, músicas, nomes escritos em pedaços de papel.

Inicialmente, as atrizes usam belas máscaras (concebidas por Yuri Yamamoto e confeccionadas por Deyvson Freitas – se eu estiver enganado, me perdoem!), que representam a expressão das velhas de modo a criar uma ambiência e uma figuratividade para fazer o espectador mergulhar nessas imagens de velhas que Samya e Tatiana encarnam. Mesmo sem as máscaras, logo depois, as atrizes assumiam, pela riqueza de expressões faciais, as figuras das velhas; e depois impressionam quando se despojam das personagens para falar, cantar e agir como as jovens que são.

Foto: Estúdio Pã - Henrique Kardozo.



Os vários objetos de cena ajudam a fazer os assuntos irem surgindo com a naturalidade de um texto bem estruturado. Assim, surgem pedaços de bolo, sacola, bolsa, fotografias, sacos plásticos, etc. Aliás, umas das cenas mais significativas da peça é uma briga por sacos plásticos, que não só é engraçada como também tem sua graça e beleza pelo colorido que deixa a cena. A presença de flores no cenário e no figurino dá um colorido que remete aos festejos de cidades de interior e seus enfeites ou aos vestidos de chita tão comuns em festas juninas de antigamente e na própria indumentária das pessoas em seu dia a dia. As fazendas estampadas dos vestidos das velhas senhoras parecem querem dizer a quem as observa: somos primaveris, cheias de graça, de belezas escondidas.

A iluminação do espetáculo (do próprio diretor, com projeto iluminotécnico de Josué Rodrigues) potencializa a cena. Quando a luz esmaece ou se apaga, muda-se o tema da conversa, muda-se o foco do texto [a não ser que eu esteja enganado, pois não consegui anotar muitas mudanças de luz, que são rápidas]. Nesse tocante, Yuri Yamamoto é conhecido por ser um diretor que preza por esses elementos e entende uma peça como uma obra uma, em que cada detalhe tem uma função. Yuri tem uma visão de conjunto aliada a uma sensibilidade inteiramente sua – fatos que podem ser facilmente evidenciados por outras montagens recentes do grupo, a exemplo de “A mão na face”, com sua meia luz, que ora cresce, ora esmaece, à medida que elementos de tensão se intensificam ou se resolvem; ou em trabalhos de direção para outros grupos, como “Caio e Leo” (texto de Rafael Martins), do Outro Grupo de Teatro, cujos aspectos climáticos são conseguidos por uma finíssima iluminação, uma sonoplastia precisa e uma trilha sonora adequada aos sentidos de certas passagens do texto.

O espetáculo “Interior” se constitui como uma homenagem “aos artistas e à cultura do interior” (como diz o programa da peça) e, dessa forma, incorpora elementos de diversas manifestações artísticas ainda bastante vivas nas cidades do interior do Ceará e de outros estados, o que confere uma nota de celebração à arte e aos artistas, mas também celebração ao público, que vê aquilo tudo fascinado e feliz, com seus afetos despertados de forma catártica, função do teatro desde tempos imemoriais, como revela Aristóteles em sua Poética, ao falar do alcance da tragédia entre os gregos. “Interior” é um desses espetáculos que poderia ser fixo do Grupo, fazer parte do repertório permanente do Bagaceira.

Em dado momento da encenação, as personagens perguntam a pessoas do público escolhidas aleatoriamente: o que você estará fazendo daqui a 50 anos? Algumas pessoas respondem sobre sua vida pessoal, sobre o futuro, sobre a morte. Eu responderia: Daqui a 50 anos, gostaria de poder estar vivo para rever esse espetáculo; se possível, realizado pelas mesmas pessoas, com a mesma energia e a mesma alegria com que se apresentam hoje.


Miguel Leocádio Araújo





[Obs.: Este vídeo da peça está disponibilizado no canal de YT do Grupo Bagaceira. Apesar de ser interessante ver o vídeo, para quem não mora em Fortaleza ou não pôde ir ver a peça, nada substitui a experiência de estar ali, vendo de perto tudo isso que o vídeo aponta como acontecimento em cena.]

2 comentários:

  1. Fiquei emocionado ao ler seu texto sobre a peça, um olhar sensível e etremamente delicado. Achei lindo você ter levado sua avó, foi um momento bem bonito. Muito obrigado pelas palavras. Grande abraço!
    Yuri Yamamoto

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  2. Yuri Yamamoto, é sempre um prazer ver os espetáculos do grupo. Mais ainda ler sua mensagem por aqui. Abraço.

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