domingo, 12 de junho de 2016

CONFISSÕES DE (UM ANJO) ADOLESCENTE




Quem diz que os anjos não têm idade ficará contrariado e surpreso com Ângela e outros anjos, personagens de O anjo do lago, livro de Socorro Acioli (cuja 1ª edição é 2006) destinado ao público juvenil, na primorosa edição da Editora Biruta, de São Paulo, com ilustrações de Mariana Zanetti, nas quais o azul celeste, o verde água e o misterioso branco predominam.



Trata-se de uma poética e misteriosa história em torno das descobertas da protagonista, um doce anjo-menina-adolescente de 14 anos, que narra em primeira pessoa (quase como confissão num diário íntimo) sua experiência em desvelar os mistérios envolvidos na sua primeira missão: proteger o Lago dos Segredos, mote para a ideia de desvendamento que perpassa todo o livro e só se resolve inventivamente nas páginas finais, deixando curioso o leitor, à espera da resolução e do entendimento das razões que levam o sereno anjo protetor a realizar a tarefa de cuidar de um lago, quando a tradição reza que os anjos da guarda, pelo menos eles, protegem pessoas. Essa é apenas uma das surpresas reservadas pela narrativa de Socorro Acioli aos leitores habituados a histórias com personagens celestiais de tão alta estirpe, quer estejam elas nos livros, nos filmes (Win Wenders foi um dos cineastas que contou histórias com personagens anjos) ou em outras manifestações culturais, cujo leitmotiv circule em torno do que se passa em planos outros que não o da vida empírica, concreta, prática, cotidiana.
Aliás, a aproximação com o cotidiano é uma das virtudes de O anjo do lago. Os personagens, as ambiências e os objetos do dia-a-dia dos anjos são quase os mesmos que o leitor conhece. Ângela tem pais e passa a ter, no decorrer da trama, um "amigo" que pode vir a se tornar um algo mais... Sim, porque nesta história os anjos podem amar, já que são seres fadados ao amor àqueles ou àquilo que protegem. Neste sentido, o livro pode agradar aos jovens leitores em vias de descobrir o amor, a paixão... Mas não só.
Cada personagem-anjo guarda sua própria idiossincrasia. Por exemplo: o Sr. Bartolomeu é sério e sábio; a Sra. Berta é alegre e excêntrica, inclusive no vestir; o jovem anjo Tiago é belo e talentoso artista. A exposição das qualidades de cada um torna-se ainda mais cabível num universo em que esses seres etéreos escovam os dentes, limpam e organizam o espaço em que vivem, trabalham em instituições como o Departamento de Trabalhos e Missões ou o Departamento do Destino, espécies de repartições de utilidade pública, administradoras dos serviços prestados pelos anjos que descem à Terra para cumprir suas tarefas.
São anjos que até mesmo leem livros, inclusive a protagonista. Ela leva para sua primeira missão dezenas de livros que, no início de sua tarefa de proteger um lago cheio de segredos, servirão de fonte de prazer, de aprendizado e de alimento à sua imaginação adolescente. Esta dimensão da leitura se envolverá com a escrita, pois Ângela também escreve. Inicialmente um diário, depois... só Deus sabe o que escreverá, mas o fará bem, pois esse é o desvendamento de um dos segredos que a vivência na pequena ilha no meio do lago lhe proporcionará.
A temática da leitura na obra infanto-juvenil de Socorro Acióli não é inédita. Desde Bia que tanto lia (Ed. Demócrito Rocha, 2004), a escritora tem explorado os encantamentos do mundo da leitura, sobretudo no que diz respeito às personagens-crianças. O que diferencia este livro dos anteriores – É pra ler ou pra comer: A história da Padaria Espiritual para crianças (Ed. Demócrito Rocha, 2005), A casa dos benjamins (São Paulo, Ed. Caramelo, 2005), O peixinho de pedra (Ed. Demócrito Rocha, 2006) – é que a temática abordada se desloca do universo da cultura e da história cearenses para dar lugar a um voo bem mais livre em relação aos compromissos com o real empírico, no que concerne à adesão ao contexto histórico e aos costumes de um povo. Dessa forma, a escritora oferece uma narrativa que indicia suas habilidades em criar uma história que abre espaço para o inusitado da representação do possível, desobedecendo a rigidez dos desígnios miméticos da prosa de ficção que muitos insistem em preconizar.
Mesmo guardando certos elos com o real, até para poder angariar a cumplicidade dos leitores às situações vividas por Ângela, em O anjo do lago, a opção narrativa (e, neste caso, imaginativa) pelo universo etéreo dos anjos parece nos querer dizer que sobrevoar a história de Ângela é viajar nas asas da imaginação, dos segredos e dos desejos.

ACIOLI, Socorro. O anjo do lago. São Paulo: Biruta, 2006.

Miguel Leocádio Araújo & Daniele Barbosa Bezerra

[Obs.: Este texto, escrito a quatro mãos, foi publicado há dez anos (em 2006) no site Dobras da Leitura, de Peter O’Sagae, hoje convertido em blog. Fiz algumas pequenas alterações e mínimas atualizações no texto.]

Nenhum comentário:

Postar um comentário