segunda-feira, 13 de abril de 2015

NARINAS ABERTAS PARA A CIDADE



A Fortaleza retratada pelos poetas e cronistas recende a café, flores e chuva, a dos romancistas é marcada pela ação nem sempre positiva do progresso. Afinal, como a literatura tratou dos cheiros da cidade?





MEMÓRIA 2

Cantam-se cantigas
ao lume do gás; perfume
de coisas antigas.

(Sânzio de Azevedo, in: Lanternas cor de aurora)






Nos idos dos anos de 1950, o poeta Carlyle Martins proferiu uma conferência em homenagem ao centenário do romancista Pápi Júnior, na qual afirmava que o perfume das rosas do jardim da casa situada à Avenida do Imperador, onde residia o autor d’O Simas, chegava com a brisa do fim da tarde às narinas dos passantes. Tal lembrança olfativa remete a um tempo em que os odores da Fortaleza de antigamente eram rememorados em prosa e verso, como forma de sedimentar uma cidade afetivamente demarcada pela pena de escritores que se ocuparam de evocar as dimensões positivas do lugar em que viviam.
Basta abrir o Cancioneiro da Cidade de Fortaleza, organizado por Artur Eduardo Benevides, para verificar que os seus aromas, captados pela poesia, aparecem de maneira discreta, como a sinalizar a própria discrição deste que, dos cinco sentidos, parece ser o mais inesperado e o que mais se esconde, diante da força plástica da visão, do poder encantatório ou ensurdecedor dos sons que inundam nossa audição, dos sabores proustianos das lembranças boas ou más para o nosso paladar ou da forma mais concreta de sentir as coisas, o tato.
Fruindo a poesia urbana do Cancioneiro, é possível reencontrar as “praças, com teus fícus-benjamins ébrios de clorofila” (Aluízio Medeiros) ou um certo odor de alegria, de quando “paira no ar um perfume de mato,/ Um cheiro de areia molhada...” (Edigar de Alencar), de quando chovia esfriando o chão ainda arenoso de outras épocas... Misturem-se essas sensações com o cheirinho doce de café, ao se passar pelas quinas da Praça do Ferreira, em princípios dos anos 1890, e pensa-se imediatamente na vontade de fabricar um pão espiritual para complementar o incorpóreo aroma exalado do Café Java...
Aliás, em algumas crônicas de Milton Dias, o cheiro do café pontuava as ruas de Fortaleza, inclusive quando o cronista afirmava estar passeando em fim de tarde, o que lembraria o clima do sertão e da convidativa merenda oferecida pelas casas das famílias de outrora, demonstrando que o provincianismo de certos aspectos da Capital nem sempre era visto de forma negativa.
No entanto, nem tudo era flor ou café ou mar naquelas lembranças poéticas de uma cidade a ser tragada pelo progresso, sempre alerta para obrigar nossos sentidos a mudarem de uma nova experiência para outra, inclusive as olfativas.
Nos romances que tomam Fortaleza como cenário para seus conflitos, aparecem registros menos agradáveis, fazendo-nos franzir o nariz diante da possibilidade de sentir o que não se quer. Em A Normalista, de Adolfo Caminha, por exemplo, aparece Romão, o responsável pela limpeza pública, que carregava na cabeça baldes cheios de dejetos, empestando o ar, como se já não bastasse o calor abafado que concentrava odores indesejáveis de um saneamento público com muito ainda por fazer. Já em A fome, de Rodolfo Teófilo, Fortaleza aparece fétida, por causa dos cadáveres das centenas de retirantes que morriam, vítimas da varíola ou qualquer outra enfermidade, nos abarracamentos de ajuda aos desvalidos vindos do interior ou mesmo nas coxias das ruas. Ali permaneciam até que os responsáveis pelos sepultamentos viessem recolhê-los. Assim, “um cheiro de carniça empestava toda a rua”... Mas era tempo de seca... E a situação tirava qualquer possibilidade de bem-estar e beleza, muito mais na prosa do que na poesia. É claro que estes romancistas adotaram o naturalismo como estética; e ressaltar criticamente o que havia de negativo na sociedade, em alguns casos, fazia-os esquecer o que havia de bom ou pitoresco, como o perfume das moças passeando no Passeio Público, as exalações dos incensos nas igrejas locais ou, mesmo, a catinguinha do estrume deixado para trás pelos burros puxadores de bonde, itens de afeição representados em outras obras, sobretudo dos cronistas.
É que naquele tempo as pessoas também se esqueciam das coisas, como hoje. E não é difícil imaginar que a própria saudade um dia também seja esquecida como um aroma de água de colônia que já se evolou no ar, porque aqui o vento às vezes é forte.
E se você pergunta a qualquer um: “Qual cheiro mais lembra Fortaleza?”, em geral a pessoa fica pensando, obviamente a querer recordar um cheiro bom. Talvez tenha sido esse sentimento nostálgico, que parece não saber responder qual a melhor memória olfativa da cidade que tenha levado Jáder de Carvalho a escrever: “Tu não possuis, ó lírica cidade,/ O perfume do tempo, o antigo aroma/ Que é mesmo a alma dolente da saudade”, uma tradução poética do sentimento pelos odores do nosso lugar.

P.S..: Este texto foi escrito para o aniversário de Fortaleza e publicado num dos cadernos de uma série especial (e maravilhosa) intitulada “Fortaleza – Os sentidos da cidade”. Este “Narinas abertas para a cidade” foi publicado no caderno sobre o “Olfato”, no dia 17.04.2009, uma sexta-feira. Hoje é segunda-feira, 13.04.2015, aniversário de Fortaleza, e republico o texto com algumas alterações. É o meu modo ambivalente de dizer como gosto dessa cidade.