segunda-feira, 22 de junho de 2009

A menor mulher do mundo

"Ali em pé estava, portanto, a menor mulher do mundo. Por um instante, no zumbido do calor, foi como se o francês tivesse inesperadamente chegado à conclusão última. Na certa, apenas por não ser louco, é que sua alma não desvairou nem perdeu os limites. Sentindo necessidade imediata de ordem, e de dar nome ao que existe, apelidou-a de Pequena Flor. E, para conseguir classificá-la entre as realidades reconhecíveis, logo passou a colher dados a seu respeito."

LISPECTOR, Clarice. A menor mulher do mundo. In: ______. Laços de família. 24. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1991. p. 88.

No Ceará, tem sido divulgada a imagem e a história de uma mulher de 28 anos que não se desenvolveu como pessoa adulta, por uma suposta disfunção na tireóide. Ela tem a aparência do que poderia lembrar vagamente uma criança de colo, não fossem suas feições e alguns de seus gestos que denunciam que ali se encontra alguém que não é um bebê de colo. Ela não foi encontrada por um explorador francês, mas pela produção de programas de auditórios locais, sendo depois "redescoberta" por programas jornalísticos ou de "variedades"... Logo deram-lhe um nome, na tentativa de uma ordem ao que existe, apelidando-a de Mulher-Bebê. E logo os apresentadores trataram de coletar dados a respeito não dela (que nada consegue contar, porque não fala), mas do que poderia ter ocasionado tal processo (às avessas) de estar do modo como algumas pessoas afirmam desejar (e tenho ouvido sempre isso de alguns amigos): ser para sempre criança... E nisso, a Mulher-Bebê tornou-se uma imagem da curiosidade atroz de todos nós, ou de pelo menos alguns.

"A fotografia de Pequena Flor foi publicada no suplemento colorido dos jornais de domingo, onde coube em tamanho natural. Enrolada num pano, com a barriga em estado adiantado. O nariz chato, a cara preta, os olhos fundos, os pés espalmados.
Nesse domingo, num apartamento, uma mulher, ao olhar no jornal aberto o retrato de Pequena Flor, não quis olhar outra vez 'porque me dá aflição'.
Em outro apartamento uma senhora teve tal perversa ternura pela pequenez da mulher que - sendo tão melhor prevenir que remediar - jamais se deveria deixar Pequena Flor sozinha com a ternura da senhora.
Em outra casa uma menina de cinco anos de idade, vendo o retrato e ouvindo os comentários, ficou espantada. Naquela casa de adultos, essa menina fora até agora o menor dos seres humanos. E, se isso era fonte das melhores carícias, era também fonte deste primeiro medo do amor tirano. A existência de Pequena Flor levou a menina a sentir, numa primeira sabedoria, que 'a desgraça não tem limites'."

LISPECTOR, Clarice. o mesmo conto, com algumas supressões.

Imagino as reações das pessoas diante da tela do televisor, ao ver a Mulher Bebê. Eu que pensava que a literatura, neste caso, falara do que não existia entre nós.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

CLARICE LISPECTOR E O FUTEBOL: A HORA DA ESTRELA SOLITÁRIA (3)

Como se não bastassem as entrevistas e toda a mitologia que envolve o nome de Clarice Lispector (com ou sem futebol), numa crônica de 1968, ela afirmou ser leitora do famoso e admirado cronista esportivo Armando Nogueira pelo fato de ele "escrever bonito", mesmo que não entendesse todo o jargão descritivo de uma partida. Esta crônica, por sinal, chama-se “Armando Nogueira, futebol e eu, coitada” e foi escrita em resposta a um comentário de Nogueira em que dizia que trocaria uma vitória de seu time por uma crônica de Clarice sobre o futebol... Pois bem, Clarice, em tom sério, beirando a dramaticidade, escreve que não perdoaria, nem por brincadeira, que se trocasse uma vitória do Botafogo por um romance inteiro dela, sobre futebol... Virtudes de torcedor devotado? Ou melhor, de uma torcedora devotada?

Apesar de sempre dizer que não entendia de futebol, ela entregava-se com uma "ignorância apaixonada" ao seu time e ainda tinha que contemporizar as divergências entre um filho botafoguense e outro flamenguista, tarefa nada fácil para quem já optara pelo primeiro time. O mais curioso é que Clarice relatou que, na verdade, gostava de assistir a jogos pela TV e que só uma vez na vida foi ao estádio para ver, de "corpo presente", uma partida de seu time. Segundo sua própria afirmação, isso a tornaria uma "brasileira errada".

E para não dizer que Clarice Lispector não colocou em ficção algo relacionado ao futebol, basta lembrar que no conto “À procura de uma dignidade”, de Onde estivestes de noite (1974), a personagem, Sra. Jorge B. Xavier, inicia sua via crucis perdida nas galerias do Maracanã, em busca de uma conferência qualquer que não sabia ao certo se ali se realizaria. Desorientada, a protagonista chega à área "verdadeira" do estádio: o campo. Mas, na verdade, encontra um "espaço oco de luz escancarada e mudez aberta, o estádio nu, desventrado, sem bola nem futebol. Sobretudo sem multidão." A nudez daquele espaço é a própria imagem do que há de mais triste no futebol, para os torcedores mais filosóficos: um estádio vazio. E Clarice inesperadamente captou esta imagem, mesmo só tendo ido uma única vez na vida a uma partida de futebol in loco. Coisas de artista...


Escrito por Miguel Leocádio Araújo