sábado, 30 de maio de 2009

CLARICE LISPECTOR E O FUTEBOL: A HORA DA ESTRELA SOLITÁRIA (2)

Em entrevistas e crônicas, Clarice Lispector chegou a se declarar absoluta torcedora do Botafogo.

Ao entrevistar Marques Rebelo, ela, para desviar-se de um assunto sobre o qual aparentemente não gostava de falar – a sua alardeada densidade como ficcionista –, pergunta qual era o time de Rebelo, que rapidamente se afirma como torcedor do América (“A única paixão de minha vida”, segundo a sentença do entrevistado). Clarice revela que é Botafogo e é logo chamada de “cartola” pelo escritor, no que ela simplesmente cala, como se consentisse... Era o final da década de 1960; e a entrevista era para a sessão "Diálogos possíveis com Clarice Lispector", da revista Manchete. Ao que parece, dialogar sobre futebol também era possível para ela, que era uma escritora considerada difícil...

Em Entrevistas (Rocco, 2007), publicação que reúne a maior parte das conversas aparecidas em De corpo inteiro (1975), mais 19 inéditas em livro, Clarice encontra-se com dois ícones do futebol brasileiro: Zagallo e João Saldanha.

Ao dialogar com o primeiro, a entrevistadora, revelando uma franca admiração, inicia por afirmar: “Sendo você bicampeão mundial e bicampeão carioca, Zagallo, eu, se dependesse de mim escolheria você para técnico da seleção brasileira.” Zagallo mostra-lhe o braço com os pêlos arrepiados de emoção. O gelo estava logo quebrado, para começo de conversa. E ela nem imaginava o que Zagallo se tornaria para a Seleção Brasileira décadas depois.

A entrevista, realizada num banco do jardim da sede do Botafogo, foi animada a risos e cumplicidade, já que a escritora estava no quartel-general do seu time do coração (selvagem?), às vezes sendo instada a sair da condição de entrevistadora à de entrevistada, mesmo que escolhesse o que responderia ou calaria. Outras vezes, ela interfere nas respostas de Zagallo (com afirmações, entre parênteses, sobre si mesma), certamente estimulada pelo papo franco e descontraído.

Algumas das perguntas ao atleta eram completamente genéricas e difíceis de responder, tais como: “Zagallo, qual é a coisa mais importante para você?”, “Qual é a coisa mais importante para você como pessoa?” ou “O que é o amor, Zagallo?” Já outras dirigiam-se mais especificamente ao esporte: “Zagallo, qual seria a melhor tática, o melhor sistema para o selecionado brasileiro na próxima copa?” Entre brincadeiras e assuntos mais sérios, como o futebol, o diálogo entre Clarice e Zagallo dá a medida de como a escritora vibrava com o esporte.

Com João Saldanha a conversa chegou a detalhes técnicos, já que o entrevistado da vez era treinador da seleção brasileira que iria para a Copa de 1970, quando seríamos tricampeões. Clarice cita vários jogadores, como Garrincha e Pelé. Uma de suas perguntas está bastante próxima dos paradoxos encontráveis em muitas de suas obras, sendo bastante curiosa: “Por que a bola não parece redonda para todos? Pois quando chega junto de certos jogadores ela é extremamente quadrada.” Esta foi uma maneira clariceana de evocar a pouca habilidade de certos jogadores à época. E a resposta de Saldanha foi extremamente objetiva, o que satisfaz a entrevistadora: “Futebol é uma arte e em arte prevalece o talento. Uns têm mais, outros menos. Eis a razão.” Um outro aspecto era o registro do conhecido lado engraçado de João Saldanha. Ao ser perguntado pela ficcionista se ele acreditava que se podia ganhar “no grito”, ele responde com desenvoltura: “Se isto fosse possível, a Itália seria imbatível. Ninguém grita mais alto que italiano. Afinal de contas, eles cantam ópera.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

CLARICE LISPECTOR E O FUTEBOL: A HORA DA ESTRELA SOLITÁRIA (1)

Em 2006, escrevi este comentário-crônica para o jornal O Povo. Como as referências datavam muito o texto, mas o tema ainda me interessa, fui modificando. E agora coloco a nova versão aos poucos.



"O futebol tem uma beleza própria de movimentos que não precisa de comparações". Esta frase poderia tranqüilamente vir de um abalizado admirador do futebol ou de qualquer torcedor minimamente atento à dimensão de arte que se chegou a atribuir a um bom jogo com bons jogadores, não viesse ela de Clarice Lispector. Aliás, a escritora declarava repetidamente ser uma pessoa comum, como qualquer outra, uma brasileira simples, mesmo tendo nascido na distante Ucrânia. E, como a brasileira que afirmava ser e de fato o foi, ela não ficou incólume às seduções deste esporte capaz de mobilizar uma nação, talvez muito mais do que outras manifestações de massas, por mais que isso desagrade a muitos. Sobretudo em tempo de Campeonato Brasileiro ou de Copa do Mundo. Imagine Clarice, diante da TV, assistindo aos jogos do Brasil na última Copa, na Alemanha, ou das Copas que ainda estão por vir...

Para alguns, isso é algo difícil de imaginar. É que a representação da autora em circulação no imaginário de uma parcela considerável de leitores, admiradores e devoradores da prosa clariceana é freqüentemente associada a outras questões: a existência e suas contingências, a condição humana sempre às voltas com seus mistérios, a condição feminina e seus desvãos, a indefectível angústia, a morte, a solidão, os limites da linguagem, entre outros temas considerados profundos e complexos. Tal associação cristalizou uma imagem bastante específica da escritora, como se ela não tivesse tido a possibilidade de uma existência comum, cotidiana. Daí talvez ser difícil vincular Clarice ao futebol, pelo menos para alguns, o que, muito longe de considerarmos algo ruim, nos serve de mote para pensar na possibilidade do inesperado ou na distante experiência do outro.

João Cabral de Melo Neto, por exemplo, escreveu um poema sobre a amiga ("Contam de Clarice Lispector"):


Um dia, Clarice Lispector

intercambiava com amigos

dez mil anedotas de morte,

e do que tem de sério e circo.


Nisso, chegam outros amigos,

vindos do último futebol,

comentando o jogo, recontando-o,

refazendo-o, de gol a gol.


Quando o futebol esmorece,

abre a boca um silêncio enorme

e ouve-se a voz de Clarice:

Vamos voltar a falar na morte?


O poema cabralino reafirma aquela imagem de Clarice interessada em discutir e rir da “Indesejada das gentes”, como disse um dia Manuel Bandeira; e o futebol entraria só de soslaio, como uma narrativa que finda para dar lugar à busca dos sentidos da morte.

Porém, há elementos pouco explorados da biografia de Clarice que a aproximam, como a muitos brasileiros, do tema do futebol, como algo que se encrava no cotidiano.

Mas é vasculhando os escritos dela que se podem encontrar indícios da possibilidade à qual me referi antes. E explico melhor aos poucos.




segunda-feira, 18 de maio de 2009

ENTRE A BOCA DA NOITE E A MADRUGADA:


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A insônia criativa e o sonho com o dia seguinte

Neste ano de 2009, se vivo estivesse, Milton Dias faria 90 anos, no dia 29 de abril. Eminentemente cronista, este cearense de Ipu tem obra vasta, sendo que apenas uma pequena parte encontra-se publicada em livro, se pensarmos que somente no jornal O Povo manteve coluna fixa durante 25 anos ininterruptos, sem falar nos textos que publicou em outros veículos. Mesmo assim, ao folhearmos Entre a boca da noite e a madrugada, temos um registro bastante abrangente e significativo dos temas de afeição do escritor, seu universo pessoal e suas técnicas de conquista de leitores.
O livro está dividido em cinco partes, cada qual com critérios temáticos que abrangem seus personagens (reais e inventados; mulheres, homens e bichos), a preocupação metafísica com o tempo (o passado, o presente, o cotidiano) e as representações afetivas do espaço (o sertão, a cidade, o mar e o lugar imaterial das angústias do ser humano). É com estes temas que Milton Dias faz um passeio lírico com sua insônia a tiracolo, elemento algumas vezes sugerido ao longo da obra, como um artifício provocador do trabalho de “cronicar”.
Neste trabalho, ele constrói um ambiente de comunicação de um “eu cronístico” (se é que isso pode existir, já que nem sempre se pode falar estritamente de narrador para certas crônicas) em reiterado diálogo consigo mesmo e um leitor imaterial e em constante reelaboração de um provável “eu lírico” escamoteado pela prosa saborosa, escrita ao som dos misteriosos ruídos da noite e da madrugada. É essa prosa insone e essa poesia sem versos que fazem de Milton Dias um representante das angústias do homem do século XX, angústias essas que podem ser as nossas, cidadãos do terceiro milênio: a passagem do tempo que modifica todos os semblantes (“Nevinha”, “Matoso – pai e filho”), as lembranças guardadas em tom nostálgico, de quem quer que elas voltem a ser presentes (“Acácias, gatos e pássaros”, “Madrugada II”), a dor e a incompreensão diante da morte (“Alba”, “O menino Valdir”, “Réquiem”) ou a solidariedade diante dos desvalidos, aqueles a quem a vida não ofereceu muita coisa (“Touro, na 0084”, “Jurema”, “Das Dores”, cujo nome é tão significativo, “Salmo do homem só”).
Vendo dessa forma, até parece que a crônica de Milton Dias é só tristeza. Paradoxalmente, e aí reside sua arte, ele procurava o tom mais poético e mais humano para falar de assuntos difíceis; e nesse propósito o escritor não dispensava o humor, tão necessário a quem pretende enfrentar as agruras de uma realidade nem sempre aprazível, ou um humor simplesmente natural em determinados eventos do cotidiano em que todo cronista, se for bom, pretende ancorar suas ideias. Em alguns textos, o humor até faz parelha com o lirismo, como é o caso de “Guardai-vos da Rainha”, que, a pretexto de falar dos encantos de determinadas regiões de Minas Gerais, oferece uma inusitada recomendação ao leitor, caso este viaje àquele estado: não faça passeio de charrete conduzido por uma burra chamada Rainha. Já em “Os golinhas”, depois de expor afetivamente os benefícios dos passarinhos na vida de uma pessoa, faz apelo hiperbólico aos leitores, no caso de virem algum “seqüestrador de golinhas”, que denunciem, pois ele havia sido “subtraído” de um de seus golinhas, “com gaiola e tudo”, por “bandidos, corja, malta de salteadores e de malfeitores!” Já a série “Ana Gerviz I, II, III”, que aparentemente se baseia em figura real, conhecida do cronista, apresenta uma dessas personagens sertanejas, religiosíssima, solterona convicta, que tinha o talento de imitar quem quer que fosse e de contar as histórias improváveis que parecem ser crias de um sertão da memória mítica de um povo sofrido, porém alegre e espirituoso.
Como se não bastasse, Milton Dias ainda pontua em várias crônicas quase como um humilde filósofo da pequenez dos fatos cotidianos, a meditar sobre as coisas preciosas e, ao mesmo tempo, aparentemente desimportantes: os gestos triviais (inclusive os de boa educação, esquecidos na vivência da urbanidade que só enxerga os símbolos de status e poderio econômico a desprezar quem não os têm); o cheiro de café das convidativas casas nas poucas ruas ainda bucólicas da cidade de Fortaleza, prometendo uma hospitalidade que já se tornara lenda no tempo do cronista; a amizade verdadeira desprovida dos interesses arrivistas do alpinismo social medíocre e vazio; o amor verdadeiro a superar todos os tipos de barreiras e de convenções; os sonhos simples das promessas de um futuro melhor que poderia vir tão somente em forma de uma crônica reconfortante para o dia seguinte; ou apenas a paisagem na janela que já não temos tempo de admirar...
Tudo foi motivo de indagação e encantamento nas linhas deixadas pelo cronista que já se foi, mas deixou em suas páginas (& folhas) uma filosofia de vida que parece querer nos indicar que qualquer pequena coisa longinquamente verdadeira que deixamos passar por nós, sem nos darmos conta, deve ser resgatada. Porque, como diria Milton Dias, a vida é breve e, até segunda ordem, só se vive uma vez.

Miguel Leocádio Araújo