sábado, 23 de janeiro de 2010

MEIO-DIA: ALGUNA POESÍA DE FORTALEZA

Hoje é sábado; e chegou às minhas mãos (ainda bem!) a coletânea Meio-dia: alguna poesía de Fortaleza, editada em 2009, pelas Ediciones Vox (Argentina), com a chancela da Prefeitura Municipal de Fortaleza, sob os auspícios do Edital de Incentivo à Literatura da SECULTFOR, organizada por Diego Vinhas. A situação não poderia ser mais auspiciosa: um café com Mariana Marques e Carlos Augusto Lima, entre conversas sobre a vida, a literatura, a arte, consciência do corpo e a cidade, sempre a cidade. Solar, como sempre diz a Fernanda Meireles, sobretudo ao meio-dia, o que me dá o mote para falar do livro, que só comecei a ler, e só comecei mesmo. Mas alguém deve estar pensando: e toda essa linguagem formal: “chegou ás minhas mãos”, “com a chancela”, “sob os auspícios”, “auspiciosa” (meio imitada de novela barata)... Bom, queria reescrever um livro que me mobilizou de forma solene, nem sei explicar direito por que, mas depois talvez até consiga. A verdade é que escondi totalmente minha empolgação na hora do recebimento do livro, Carlos Augusto bem sabe, provavelmente. É que li recentemente num trecho escrito por Ferdinand Baldenspenger (um dos solos da literatura comparada) que um pesquisador que se preze tem que observar as coisas e observar as coisas. Sim. Porque quando ele olha apaixonadamente para as coisas compromete o objeto observado, enche-o de auras, de esplendores e de auréolas que, incandescentes que são, acabam por turvar a vista. E como é meio-dia, melhor não se mostrar tanto. Mas quando eu estou aqui sozinho, com um livro na mão, a atitude é diversa. Primeiro, olhar, folhear, passar as páginas uma a uma, conferi-las rapidamente, para enxergar o que há ali de palavra e o que há ali de visual que a palavra pode ter. Impressões iniciais. Depois, ver com as mãos e com os olhos. Constatar que ali estão algumas pessoas e alguma cidade e alguma poesia NA/DA/SOBRE A/CONTRA A/ ATRAVÉS DA/COM A cidade. Mas a cidade se desdobra. Alguns diriam: se desdobra numa dobra. Mas não terminei de ler a filosofia contemporânea, nem me confrontei decentemente com esquizoanálise. Então passo a ler. Primeiro a apresentação de Diego Vinhas, cujo nome me sugere a origem da embriaguez, seus primórdios e seus emaranhados. Veja só: “O que pode ter de significativo ou bobagem, uma querida bobagem, em tentar, a partir de algumas pessoas, amigas, provocar um mínimo de tensão [desejável para mim], de fazer uma cidade [uma primeira ambiguidade que eu também desejaria para mim mesmo], por pequenos mundos dela (as mesmas pessoas amigas), pensar em si, olhar seus próprios desvios, seus baldios, para um gesto de movimento.” Diego Vinhas me dá a possibilidade, então, de pensar a poesia contemporânea produzida por aqui da maneira que eu gostaria, alguns mundos juntos, num só suporte, numa só trama, numa mesma materialidade. E aí me empolgo mais e penso na minha dificuldade de aceder ao coletivismo, dificuldade própria da minha natureza pétrea. Mas, como se isso não bastasse, para alguém que se pretende pesquisador, ainda lança uma respiração a mais: “Meio-dia sublinha o corpo, anula a sombra.” O corpo. A sombra anulada, desfeita, impossível de ser vista, mas que existe como signo; e tudo o mais. Imagens que têm muito a ver com a natureza da literatura produzida agora, já, hoje e possivelmente no tempo próximo; impressão minha. Com corpo e lacunas, sinais pensados, partilhados, complexos, afirmando (o que os poetas dizem? E a resposta é: dizem agora). Não vou falar agora o que penso, nem é necessário. Leio na ordem dada por Diego Vinhas, porque me pareceu um organizador organizado. Ainda estou fazendo anotações aos poemas de Henrique Dídimo. Depois eu falo.

domingo, 10 de janeiro de 2010

QUINTAN(ARES) DA CRIAÇÃO

Estes últimos dias, estudando para dois concursos, me peguei relendo poemas de Mário Quintana, e lembrei que havia escrito um artigo pequeno para o Jornal O Povo, em julho de 2006. Daí fui reler o texto, fiz algumas modificações e coloco-o aqui, em forma de homenagem, incapaz que sou de ser poeta e preguiçoso que tenho estado para escrever coisa nova.




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Na primeira estrofe do poema que abre o livro de estréia de Mario Quintana, Rua dos cataventos, encontramos versos cujo conteúdo poderia servir de pórtico principal para o entendimento de parte de sua produção:
“Escrevo diante da janela aberta.
Minha caneta é cor das venezianas:
Verde!... E que leves, lindas filigranas
Desenha o sol na página deserta!”
Apesar de um certo perfume tradicionalista para um poeta que estreava em livro no ano de 1940 (quando as sucessivas revoluções do Modernismo já iam longe), de qualquer modo, lembrar estes versos é chamar a atenção para o fato de que o poeta, em toda a sua extensa obra, deixou textos que expõem os deslumbramentos e os impasses de quem escreve, muitas vezes representando a situação do criador diante da produção de seus textos.



Do pórtico principal, a produção de metapoemas, que atravessa toda a trajetória de Quintana, pode ser tomada como uma sala de estar, na qual o leitor se ambienta com os mistérios da criação poética, suas seduções e seus modos de existir. É neste lugar que este leitor pode ser convidado a conhecer outras partes do edifício lírico construído ao longo de mais de 50 anos de vida literária, além de constatar que mesmo as agruras do ato de poetar (“Uma palavra só / Pode tudo perder para sempre...”) transformam-se em motivo para uma comunicação intelectual e afetiva com os leitores, como ele deixa claro num fragmento de Sapato florido: “O Poeta, para entrar em contato com outros homens, põe-se a fazer poemas.” Tal idéia revela a consciência das funções da literatura e da leitura. E ele soube explorá-la (esta consciência) como uma das vertentes importantes de sua obra, em consonância inclusive com a tendência da lírica no século XX de pensar a criação poética ou de problematizá-la: a metalinguagem passa a ser uma conquista legítima dos criadores (não apenas uma possibilidade lírica entre outras que um autor poderia ou não escolher), cada vez mais preocupados com o poema, enquanto artefato que incorpora uma compreensão emotiva da existência. Mario Quintana entre eles.
Mas Quintana amplia essa dimensão para um entendimento prático do processo de contato entre leitor e poema, talvez por causa de seus longos anos de trabalho junto à editora Globo, de Porto Alegre, onde começou como desempacotador da seção de livros estrangeiros para chegar a ser um de seus mais ilustres tradutores, além de ter editado ali a maioria de seus livros.
Em outro trecho de Sapato florido, o poeta fala dos livros de poesia, que "devem ter margens largas e muitas páginas impressas, para que as crianças possam enchê-las de desenhos (...) que passarão também a fazer parte dos poemas..." Ao mesmo tempo em que demonstra conhecer o papel da materialidade dos livros de poesia, sugere uma apresentação da página que possibilite a intervenção mais efetiva do leitor no texto, renovando uma idéia acerca da comunicação poética: poeta e leitor, por atuações diferenciadas, podem produzir um mesmo texto, pois converge-se para um só objetivo, o jogo lírico entre entender e sentir.
Vale a pena lembrar os diálogos que Mario Quintana estabelece com outras linguagens e outros autores. No primeiro caso, a música ressalta como uma preferência não só no nível formal, mas também no temático: há poemas que se referem a canções, noturnos, cânticos, sonatas, jazz... Já no segundo, temos as constantes intertextualidades com os autores de sua convivência, inclusive os estrangeiros. Este último aspecto se conjuga bem com a já anunciada atividade de tradutor. Entre os muitos que verteu para o português, estão Balzac, Maupassant, Proust, Virginia Woolf, Aldous Huxley...
É certo que muitos escritores de sua geração recorreram a este trabalho não por diletantismo, mas pela necessidade, já que viver de direitos autorais sobre livros de poesia já era algo pouco crível naquela época. Sobre isso Quintana também escreveu, demonstrando de novo uma consciência de que o fazer poético passa por estas questões. Em “Pequena tragédia brasileira” (de Caderno H), o poeta ironiza: “A Bem-Amada queria devorar o coração do poeta. - Não, disse ele - só terás um pedacinho... Porque noventa por cento pertence aos editores.”
O poema, os leitores, os livros, as páginas, os editores e os valores implicados no universo da criação, nada disso escapou à lírica de Quintana; são temas construídos numa mesma base: como se dá ares à criação? Como ela acontece e se estabelece no trânsito entre autor, textos e leitores? O poeta metaforizou sobre isso, algumas vezes com uma irônica crueldade, como nos versos finais de “O poema”, de O aprendiz de feiticeiro, em que brada: “Para bem das águas e das almas/ Assassinemos o poeta.” Para os leitores de Quintana, isso é impossível e indesejável: uma vez tendo passado pelo pórtico principal e pela sala de estar, permanecemos em seu edifício poético e dele tomamos posse, junto com o poeta que vive.