segunda-feira, 21 de julho de 2014

JUVENAL GALENO, UM ROMÂNTICO NA PROVÍNCIA



Os historiadores da literatura brasileira costumam marcar o início do Romantismo no país em 1836, ano da publicação da obra inaugural Suspiros poéticos e saudades, com poemas de Gonçalves de Magalhães, mas também ano do nascimento de Juvenal Galeno (1836-1931), em Fortaleza. Esta coincidência leva a crer que o mais significativo poeta romântico local nasceu com a própria estética à qual se ligou em toda a sua vida literária, com uma obra diversa, espalhada em livros e periódicos do Ceará e de outros estados



Quando se fala em Juvenal Galeno, é inevitável a referência ao Romantismo, estilo de época que encorpou a produção artística nacional, dirigindo-a a um processo de nacionalização cultural cada vez mais acentuado, até franquear por completo as imagens do cotidiano, dos costumes e da mentalidade atribuídas ao brasileiro, em suas muitas facetas – algo que se costuma dizer das vertentes do Modernismo nacional, em alguns aspectos devedor do Romantismo. Mas foram os escritores românticos que primeiro sistematizaram essa vontade de voltar-se para um modo de produzir arte que fosse mais próximo dos falares e fazeres praticados na nação. E Juvenal, como fiel romântico que foi, não deixou de captar esse espírito e foi buscar nas fontes populares a matéria para a produção da maior parte de sua obra, à maneira de alguns românticos europeus de primeira hora, como Goethe, que observou o teatro popular praticado na Renânia para ensaiar obras que de alguma forma pudessem remeter àquele espírito popular.
Mas esta preocupação não parece ter sido tácita no Romantismo brasileiro, majoritariamente ligado às representações das camadas médias da população urbana, sendo que o popular aparece de certa forma como coadjuvante, algo pitoresco ou mesmo anedótico, salvo algumas exceções. Juvenal Galeno foi na contracorrente desta ideia e fez da cultura popular, da simplicidade e dos temas e técnicas até certo ponto pouco prestigiados na poesia livresca, a motivação mais patente de sua produção tanto em verso quanto em prosa, tendo sido por isso elogiado por companheiros de ofício, como José de Alencar ou Gonçalves Dias.
Por exemplo, seu livro Cenas populares (publicado em 1871), o primeiro volume de contos lançado no Ceará, como bem lembra Sânzio de Azevedo, circula em ambientes variados, em atmosferas diversas, com personagens heterogêneos, tendo como princípio orientador de todas as histórias ali apresentadas a exploração da temática regionalista, bem como o aproveitamento de alguns dos procedimentos caros românticos, como a apresentação da natureza como lugar da felicidade, da ordem e da plenitude. Além disso, o autor não despreza sua experiência como poeta e observador das manifestações poéticas da oralidade e pontua aqui e ali suas narrativas com versos, quadras, poemas inteiros, nos quais se percebe a procedência popular desta poesia, dando leveza às narrativas, como era de se esperar de um escritor cioso dos desígnios da estética abraçada. O livro recebeu uma edição recente, a quarta, pela Secretaria de Cultura do Ceará (SECULT), preparada por Sânzio de Avezedo, em 2010, no âmbito da reedição da obra completa do escritor (disponível em PDF no site do Governo do Estado do Ceará).



Outra dimensão temática significativa da obra de Juvenal Galeno é o cotidiano, prevalente em sua poética, amparada na vida e nos costumes do homem simples do sertão e do litoral. Neste sentido, Galeno antecipa a aceitação de um dado do estabelecimento temático da poesia brasileira que só seria plenamente assimilado com o amadurecimento da poesia de Manuel Bandeira: o cotidiano é alçado à condição de tema lírico tanto quanto os temas considerados nobres, consagrados pela tradição literária.
Enquanto longeva figura do Romantismo brasileiro, Juvenal Galeno acompanhou o surgimento de outras estéticas, tais como o Realismo-Naturalismo, o Parnasianismo, o Simbolismo e o Modernismo, sempre respeitado como homem de letras, mantendo contato constante com as gerações mais jovens. Não à toa, ao folhearmos as coleções dos periódicos A Quinzena (ligado à cena realista em seus primórdios em Fortaleza) ou O Pão (conhecido jornal da famosa Padaria Espiritual), entre outros, é possível encontrar textos de Juvenal Galeno, quase sempre poemas românticos, demonstrando sua filiação e sua fidelidade ao estilo de época nascido com ele próprio, em 1836.



[Este texto foi publicado no jornal O Povo, em 30.09.2006, no caderno Vida&Arte, na ocasião em que se comemoravam os 170 anos de nascimento do poeta. Retomei-o fazendo algumas alterações, inclusive no título.]

segunda-feira, 14 de julho de 2014

“CAIO E LÉO”, EXPERIÊNCIA DE ESPECTADOR (Parte I)



Fui rever a peça “Caio e Léo” no Teatro Universitário. Já tinha visto no Teatro do Dragão do Mar e havia ficado impressionado com o texto e com o trabalho da direção e dos atores. Por muitas questões, que me afetam pessoalmente. Ainda assim, é novidade eu escrever aqui sobre minha experiência diante de um trabalho artístico no campo das artes cênicas na contemporaneidade, já que olho muito, mas não escrevo nada, nem sei por quê... De qualquer modo, são muitas as questões que acredito estarem implicadas no espetáculo e que me mobilizam a escrever sobre.



Inicialmente, é a solidão de Caio (Ari Areia) que ressalta: ele está inteiramente só, sob uma luz que sugere o pôr do sol, tendo como trilha o barulho do mar. Ele espera alguém que não veio, possivelmente a namorada; o rapaz acha que o relacionamento terminou. Acaba por conhecer seu avesso, Léo (Tavares Neto), o desconhecido que quer se lançar ao infinito do mar e em seu gosto pelo nado, sendo impedido pelo medo de Caio. A impressão de solidão se desfaz com esse encontro, mas, em outros momentos, ela é retomada pela ausência de um dos atores. Ainda assim, a contradição entre eles permanece: Caio é o pragmático especialista em planejamento, com vida organizada, hora marcada e caminhos bem traçados; Léo é o intuitivo fotógrafo de cadáveres que deseja captar o vento em suas lentes – livre, experimentador, belo em sua coragem. O medo e o desejo se encontram.
O tema da negação amplia as contradições apresentadas no texto: Caio quer ser fotografado por Léo, mas este se nega a fazê-lo. Por outro lado, Léo convida Caio a mergulharem juntos, mas este recusa. Assim, o não comparece constantemente no diálogo e no desenvolvimento dessa relação, em que as diferenças e as contradições sobressaem. Numa cena, Caio perdeu a localização de seu carro e não quer ir embora com Léo, que havia sugerido dormirem juntos no apartamento deste. Quando o carro é achado, é Léo quem não quer ir embora com Caio, que havia proposto saírem juntos dali. Esses muitos nãos parecem dizer que aqueles dois não encontram uma via de entendimento, construindo um relacionamento baseado na impossibilidade.
A tensão amorosa se materializa pela expressão do desejo, mas também por uma mal contida violência (tanto verbal quanto física, em cenas que funcionam como clímax de cada um dos desentendimentos enfrentados pelos personagens). A tensão é, assim, um erotismo ambivalente, que vai da tentativa de carinho à recusa quase violenta desse carinho, bem como à realização plena da conjunção erótica. Aqui o trabalho dos atores é essencial, no sentido de modular essas nuances: do olhar desejante e terno ao gesto discreto de repreensão; da fala expansiva e amorosa ao grito expressando ira ao outro.
Na realidade, “Caio e Léo” fala dos descompassos entre as pessoas nos relacionamentos. A contradição reside no seguinte: numa relação de amor entre iguais, não se pode ter posturas de vida e de comportamento mais diferentes e contraditórias do que as de Caio e Léo. Trata-se do contraste entre o subjetivo e o objetivo, entre a vontade de viver e experimentar e a vontade de controlar a vida e a experiência, entre a volatilidade dos sentimentos e a concretude desses mesmos sentimentos. É a complexidade da própria vida dos indivíduos em processo de entrega; e os relacionamentos afetivos, eventualmente, não dão conta dessa complexidade, gerando a narrativa desencontrada, a fala interrompida, o gesto fundo da dor. Nesse sentido, a peça tematiza as relações amorosas atravessadas pelo desamor.



[Continua]

“CAIO E LÉO”, EXPERIÊNCIA DE ESPECTADOR (Parte II)



O trabalho com a luz é elemento que colabora para a construção da narrativa de “Caio e Léo”. Um dos momentos mais climáticos da peça ocorre pela formação de sombras na parede de fundo do palco, enquanto no centro do palco se dá uma cena de intensa intimidade e tensão erótica entre os personagens: o público vê projetados os corpos dos atores da cintura para baixo, numa sugestão de erotismo bastante plástica. Nesse sentido, é possível que a direção de Yuri Yamamoto tenha intencionalmente dialogado com as artes visuais – não se deve esquecer que um dos personagens é fotógrafo, ou seja, já há uma abertura no próprio texto de Rafael Martins a esse diálogo. A própria luz do espetáculo remete ao universo do fotógrafo Léo; as várias direções e intervalos em que a iluminação ressalta ou se esmaece parece querer nos lembrar flashes de uma câmera selecionando o que deve ser captado pelo olhar.




Outro momento plástico é quando Caio, empunhando um foco de luz, movimenta-se com um boneco, ele mesmo, afinal – quase numa performance solo de Ari Areia –, também com um trabalho de iluminação muito sugestivo (porque poético): a ideia de pequenez e de solidão confirma o modo como a trajetória de Caio começa: em solidão e silêncio diante da luz que o atravessa. Isso se assemelha ao trecho da distribuição de carros nos estrados que servem como palco, à maneira de um artista visual começando a montar uma de suas instalações: na cena, a ideia de perder-se e perder um objeto é mote para se notar que Léo é o contraponto de Caio, mas já relativizando-se esse contraponto. O fotógrafo leva a vida aos saltos, enfrentando os riscos, lançando-se ao desconhecido; no entanto, ele também procura a estabilidade do amor. Já o especialista em planejamento leva uma vida onde só deve haver espaço para a certeza e a previsibilidade; no entanto, ensaia outra posição para si e já admite correr riscos. A influência do amor e do desejo opera mudanças no comportamento dos personagens.
Cada elemento da montagem de “Caio e Léo” está carregado de sentido. Um exemplo disso é o fato de a ação transcorrer predominantemente em cima de estrados que representam um píer à beira-mar, mas também outros espaços. A simetria desse objeto de cena remete ao cartesianismo de Caio, aos seus caminhos bem traçados, aparentemente sem espaço para quebras ou desvios; enquanto o jogo de iluminação do espetáculo remete ao fotógrafo, como já mencionado. Inclusive, a inversão da direção da luz (ora de cima para baixo, ora de baixo para cima) é algo que me pareceu dividir as cenas, mas também as experiências dos dois rapazes. Parece que a luz que vem de debaixo dos estrados – nos intervalos entre as cenas – tenta sublinhar a reorganização da vida e os vazios entre as falas, que por sua vez apontam para a necessidade de se preencher esses vazios com as falas de um amor em construção, desenvolvendo uma paixão cada vez mais difícil.
Por outro lado, os sons que permeiam a cena remetem também ao sonho de Léo, no que há de captação do vento, já que o barulho do mar pontua em vários momentos. Ao mesmo tempo, a trilha sonora – por favor, produção, divulgue as músicas que estão na peça! – compõe um clima de delicadeza associada à possibilidade da realização do amor, mas também de melancolia, o que cria, para o espectador, no meio do espetáculo, uma dúvida se o amor se efetiva ou não.



Nas duas apresentações que vi, os efeitos são um pouco diferentes. No Teatro do Dragão do Mar, tem-se a impressão de maior efeito visual, em alguns momentos, pela própria estrutura do palco, mais amplo. Já no Teatro Universitário, tive a impressão de maior proximidade com o público, algo condizente com o intimismo do próprio texto. Nas duas apresentações, os atores cumpriram com sensibilidade os seus papéis, nas modulações de voz, na contenção dos gestos e na expressividade própria de quem vive outras vidas. Fiquei pensando: atores tão jovens e já tão expressivos... Os dois em cena me lembraram uma música do Suede (“The wild ones”, não sei por quê. Depois de ambas as apresentações, fui ouvir essa música pensando na peça...). Incluo autor, diretor e artistas da técnica do Outro Grupo de Teatro entre esses “wild ones” que fazem sonhar. “Tem coisas que, mesmo que a gente não veja, elas existem”, diz Léo. A beleza, a gente vê e ouve. Muito nitidamente.

“Caio e Léo”, no Teatro Universitário, Avenida da Universidade, 2210, Benfica, Fortaleza, durante todo o mês de julho de 2014, aos sábados e domingos, às 19 horas. Texto de Rafael Martins. Direção de Yuri Yamamoto. Com Ari Areia e Tavares Neto.

Miguel Leocádio Araújo

P.S.: Não sou crítico de teatro, nem jornalista. Só escrevi sobre uma peça de José de Alencar (“O Rio de Janeiro – Verso e reverso”), para uma publicação acadêmica. Mas gosto de ler teatro e ver peças por aí. Apenas me arrisquei a escrever sobre um espetáculo que me fez ficar pensando na vida... 




terça-feira, 8 de julho de 2014

BIBI IN CONCERT (Um relato de Caubi Tupinambá)

[Esses dias, um grande amigo enviou um texto bonito sobre o espetáculo de Bibi Ferreira, que deixa as pessoas emocionadas. Com autorização do autor, transcrevo aqui o relato que, inicialmente, era para circular somente entre amigos.]





Não precisei ler uma biografia mal escrita ou parcial, produto de um ghost writer, cheia de meandros e atalhos para impressionar e vender; apenas mais um best seller. A biografia de ontem li com os olhos, ouvidos e todos os sentidos, incluindo aí o coração. Tudo pela boca da própria biografada. Aos 92 anos de vida, sobe ao palco uma diva de nome Abigail Izquierdo Ferreira, filha do não menos talentoso Procópio Ferreira e de outra artista, a espanhola Aída Izquierdo. Conhecemos a artista por seu nick Bibi, Bibi Ferreira. Talvez parasse por aqui, pois assim deixaria de passar a escrever sobre o óbvio, o que todos conhecemos de uma mulher cujo nome é sinônimo de talento, audácia e vida. Os 92 anos não a impedem de ser mais lúcida, transparente, autêntica, atual e – pasmem! – mais atenta ao mundo do que muitos jovens recém-saídos de nossas escolas e universidades.
Bibi é expressão de vida, de juventude, de respeito e preocupação com primor e qualidade artística, estética, ética. Com sua performance, ela nos salva da mediocridade do cotidiano, do urbano rápido das redes e nos faz adentrar em um universo biográfico dos mais originais; um universo tão vívido, que insiste em se atualizar e ir contra os usuais estereótipos de velhice e juventude. Vejo como muitos de nós somos velhos e como poderíamos com ela aprender a ser jovens, a nos desvencilhar de valores tacanhos, que nos são impostos e nos impedem de ir além, de transcender limites.
É como digo: “Se no Brasil houvesse somente Bibi Ferreira, esse seria motivo suficiente para ter muito orgulho de ser brasileiro”.
O espetáculo de Bibi não é apenas um concerto, mas um passeio sumarizado por si mesma e seu companheiro de palco, maestro que rege bela orquestra, dando à apresentação desse resumé existencial força e fio condutor. O epicentro dos acontecimentos gira em torno dos seus doze, treze anos simbólicos, sempre evocados ao se referir a suas memórias. Sejam esses doze ou treze anos no século XVII ou XX, eles sintetizam momentos cruciais de sua história de vida e de sua arte, que se confundem e se mesclam. Vê-la ser conduzida ao centro do palco por seu diretor, que também participa, em parceria de uma chanson de Piaf, revela a fragilidade física de quem já se aproxima do século de vida, mas também evidencia a força de quem, com voz jovem e afinada, nos faz esquecer esses limites impostos a um corpo que se ousa elegante e afável – e por isso se deseja abraçar, acalantar e proteger. Uma fortaleza revelada na memória impecável, nos sonoros registros que levariam à inveja jovens e outros seres cantantes.
Bibi ainda me prestou um serviço cultural ao conectar, por meio de seus traços biográficos, o canto em uma Hollywood remota ao musical brasileiro do qual foi precursora, a compositores e cantores brasileiros originais, de quem foi amiga, contemporânea e intérprete, a músicas do rádio, a ângelas, elisetes e noéis, mas também a gotas d’águas de chico. Nos deleita com arte, ao colocar nas óperas, adonirans, caymis, nasser e soares só para dar alguns exemplos. Não faltou ao show uma deixa à bossa nova e ao seu cativo culto à Piaf, que encarna com esmero e perfeição e de quem se confessa admiradora na arte de cantar e na arte de viver: “– Edith conseguiu um marido com a metade de sua própria idade, o que não ocorreu a mim. Era uma mulher intensa no amor, inclusive em seu sentido prático...” Bibi é a prova, de que a libido não tem idade, não morre, quando não se quer.
Nesse sentido, essa viagem aos 92 anos por sua história é também uma viagem pela história da arte dramática e da música no Brasil e – por que não? – no mundo. O melhor: nada disso é sua pretensão, tudo isso é meu desejo, que por ela foi despertado através de seus despretensiosos sinais nessa hora de inefável companhia de uma grande dama universal.
Talvez tenha sido esse um dos maiores privilégios que pude ter neste ano de 2014, o de compartilhar das memórias vivas, sobre um palco, de uma deusa, que vem e nos salva do óbvio e nos leva ao êxtase, sem sequer saber que é capaz de tudo isso. Quiçá por isso tive de me sensibilizar tanto e até ensaiei chorar em certos momentos do seu show, porque testemunhei como da fragilidade humana pode-se obter tanta força e arte para justificar e dar sentido à vida.
Caubi Tupinambá, Teatro Frei Caneca SP, 4 de julho de 2014.

[Caubi Tupinambá é psicólogo, professor da UFC, Mestre em Psicologia pela Universidade de Salzburg-Áustria, Doutor em Psicologia pela Universidade de Giessen-Alemanha, Pós-Doutor, pela Universidade de Madri-Espanha. Entre seus livros publicados, destaco Timor do sol nascente e outras crônicas, Fortaleza, Omni, 2004.]