quinta-feira, 30 de junho de 2016

O CEARÁ POR INTEIRO NAS FOTOGRAFIAS DE MAURÍCIO ALBANO



Panoramas – Ceará por inteiro, livro de fotografias de Maurício Albano, abre-se como um convite para as paisagens vastas. Desde sua capa, os elementos visuais explorados pelo fotógrafo na captação e na representação de um Ceará “por inteiro” são anunciados: a linha do horizonte divide a paisagem entre terra e céu, entre água e ar, entre o malhado e o seco, entre luz e sombra, entre o próximo e o distante de quem olha.
As imagens são panorâmicas, formato relativamente incomum para um livro de fotografias, o que provocou uma solução bem interessante para a edição. Diferentemente da maioria das publicações nessa área (que seguem um modelo convencional de forma e tamanho de livro), adota um outro modelo de manuseio por parte do leitor: em formato retangular (40 cm de largura e 18 cm de altura) o livro abre para cima, como se fosse um calendário de mesa. Isso potencializa a observação das fotos, pois cada uma aparece inteira – às vezes duas – numa única página, sem a interferência da divisão de uma página para outra (que, nos livros em formato usual, corta a fotografia em duas na verdade) ou sem o recurso da página dobrada para abrigar uma fotografia (quando uma página não é o suficiente para conter uma imagem maior).
Dividido em quatro partes, Maurício Albano dá conta de paisagens e tipos humanos emblemáticos do Ceará: “Litoral”, “Sertão” e “Serras” trazem ícones da paisagem cearense, como as praias, as dunas e os mangues litorâneos com sua biodiversidade característica; a caatinga, os monólitos do Sertão Central, as fazendas e o casario ainda preservados de algumas cidades sertanejas e os açudes; as cachoeiras serranas, os aspectos montanhosos e fauna e flora das regiões altas do estado. Na última parte – “Cultura” – há belos registros de bumba meu boi, festas de Santo Antônio, produção de cerâmica, fabricação de rapadura e de carne de sol, farinhada, preparo de tapioca, debulhar do feijão verde, entre tanta coisa que ainda caracteriza o cotidiano de diferentes partes do Ceará.


 
A impressão de variedades de luz aponta para as tomadas terem sido feitas em diferentes épocas do ano e em diferentes momentos do dia – da madrugada e do início da manhã até a noite de lua alta. As imagens vão dos anos 1970 aos anos 2000 (a maioria desses últimos); e quando foram publicadas (final de 2014), fruto de um projeto pessoal, Albano já tinha mais de 40 anos de carreira como fotógrafo. Pouco tempo depois do lançamento, o artista faleceu (março de 2015), antes de completar 70 anos, com antecedente renome nacional pelo trabalho de captação dos lugares do Ceará e do cearense bem como sua diversidade cultural, o que foi registrado em outros livros seus, em exposições, em colaborações para jornais e revistas, entre outros trabalhos.

Tal renome é reconhecido por quem escreveu os textos presentes em Panoramas – Ceará por inteiro: o jornalista Flávio Paiva e o pesquisador e escritor Gilmar de Carvalho, que assinam textos de apresentação que completam a edição primorosa da Terra da Luz Editorial.
O Ceará mostrado nas imagens é belo, de cores fortes (algumas vezes, estranhas), de paisagens impressionantes (algumas delas inusitadas, para mim, que não viajei o suficiente para conhecer meu próprio estado) e lugares convidativos. Mas também o povo cearense é registrado em muitas das fotografias, quer seja em suas atividades mais prosaicas realizadas pela gente simples, quer seja em suas atividades culturais praticadas na base da alegria das pessoas. Observar os trabalhos de Maurício Albano é um exercício de se reconhecer como cearense, como parte de cada uma das panorâmicas desse “Ceará por inteiro” que nos cabe.


ALBANO, Maurício. Panoramas – Ceará por inteiro. Fortaleza: Terra da Luz Editorial, 2014. 120 p.


Miguel Leocádio Araújo

segunda-feira, 27 de junho de 2016

CONGRESSO SOBRE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO EM FORTALEZA



O Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira da Universidade Federal do Ceará promoverá a 15ª edição do Congresso de História da Educação do Ceará, a ser realizado em Fortaleza, na Casa de José de Alencar, com o tema História das Ideias Pedagógicas e das Ciências: uma circulação de longa duração por continentes e oceanos.


Inscrições de 28 de Maio a 10 de Julho de 2016 (com trabalho); de 28 de Maio a 28 de agosto de 2016 (ouvintes).
 
Mais informações, no site do evento.

quinta-feira, 23 de junho de 2016

"INTERIOR", EXPERIÊNCIA DE ESPECTADOR (Parte II)




[Continuando... - A parte I está aqui]

Em “Interior”, há duas velhinhas que se recusam a morrer, interpretadas maravilhosamente por Samya de Lavor e Tatiana Amorim, que captaram as inúmeras velhas que encontramos em nossa trajetória. As modulações de voz, as inflexões de gestos e o fraseado utilizado são claramente oriundos de uma profunda pesquisa que redunda na composição de duas personagens que se dizem avó e neta, mas ora parecem irmãs ou amigas, cheias de cumplicidade e de arengas. Não se sabe bem em que idade estão, embora a neta afirme “ser ainda uma menina” aos 97 anos. A outra, não sabemos ao certo a sua idade. O que se sabe é que, por alguns momentos, até conflito de gerações surgem.

Foto: Divulgação.


De início, o andamento da ação e a movimentação de cena são lentos, como que para mostrar não só a lentidão dos movimentos das velhas senhoras, mas também a morosidade da passagem do tempo para quem viveu tanto que não sabe mais quantos anos passaram. E dentro dessa ideia do tempo que passa e da lentidão da velhice, já se começa falando da morte: uma delas afirma que pensam por aí que ela morreu, inclusive sua neta. A morte como fim na realidade é o começo para um diálogo que remete, a partir de um determinado ponto da peça, a tudo o que se tem ainda para viver. Nesse ponto, as atrizes se transformam, passam de velhas a quase crianças e perguntam ao público o que ainda se tem para viver no futuro. Aqui, pode-se dizer que “Interior” é uma peça otimista, já que deixa na entrelinha a ideia de que nada se acaba com a morte, mas que pessoas e coisas podem viver eternamente na memória e nos registros materiais em que essa memória encontra lugar: fotografias, músicas, nomes escritos em pedaços de papel.

Inicialmente, as atrizes usam belas máscaras (concebidas por Yuri Yamamoto e confeccionadas por Deyvson Freitas – se eu estiver enganado, me perdoem!), que representam a expressão das velhas de modo a criar uma ambiência e uma figuratividade para fazer o espectador mergulhar nessas imagens de velhas que Samya e Tatiana encarnam. Mesmo sem as máscaras, logo depois, as atrizes assumiam, pela riqueza de expressões faciais, as figuras das velhas; e depois impressionam quando se despojam das personagens para falar, cantar e agir como as jovens que são.

Foto: Estúdio Pã - Henrique Kardozo.



Os vários objetos de cena ajudam a fazer os assuntos irem surgindo com a naturalidade de um texto bem estruturado. Assim, surgem pedaços de bolo, sacola, bolsa, fotografias, sacos plásticos, etc. Aliás, umas das cenas mais significativas da peça é uma briga por sacos plásticos, que não só é engraçada como também tem sua graça e beleza pelo colorido que deixa a cena. A presença de flores no cenário e no figurino dá um colorido que remete aos festejos de cidades de interior e seus enfeites ou aos vestidos de chita tão comuns em festas juninas de antigamente e na própria indumentária das pessoas em seu dia a dia. As fazendas estampadas dos vestidos das velhas senhoras parecem querem dizer a quem as observa: somos primaveris, cheias de graça, de belezas escondidas.

A iluminação do espetáculo (do próprio diretor, com projeto iluminotécnico de Josué Rodrigues) potencializa a cena. Quando a luz esmaece ou se apaga, muda-se o tema da conversa, muda-se o foco do texto [a não ser que eu esteja enganado, pois não consegui anotar muitas mudanças de luz, que são rápidas]. Nesse tocante, Yuri Yamamoto é conhecido por ser um diretor que preza por esses elementos e entende uma peça como uma obra uma, em que cada detalhe tem uma função. Yuri tem uma visão de conjunto aliada a uma sensibilidade inteiramente sua – fatos que podem ser facilmente evidenciados por outras montagens recentes do grupo, a exemplo de “A mão na face”, com sua meia luz, que ora cresce, ora esmaece, à medida que elementos de tensão se intensificam ou se resolvem; ou em trabalhos de direção para outros grupos, como “Caio e Leo” (texto de Rafael Martins), do Outro Grupo de Teatro, cujos aspectos climáticos são conseguidos por uma finíssima iluminação, uma sonoplastia precisa e uma trilha sonora adequada aos sentidos de certas passagens do texto.

O espetáculo “Interior” se constitui como uma homenagem “aos artistas e à cultura do interior” (como diz o programa da peça) e, dessa forma, incorpora elementos de diversas manifestações artísticas ainda bastante vivas nas cidades do interior do Ceará e de outros estados, o que confere uma nota de celebração à arte e aos artistas, mas também celebração ao público, que vê aquilo tudo fascinado e feliz, com seus afetos despertados de forma catártica, função do teatro desde tempos imemoriais, como revela Aristóteles em sua Poética, ao falar do alcance da tragédia entre os gregos. “Interior” é um desses espetáculos que poderia ser fixo do Grupo, fazer parte do repertório permanente do Bagaceira.

Em dado momento da encenação, as personagens perguntam a pessoas do público escolhidas aleatoriamente: o que você estará fazendo daqui a 50 anos? Algumas pessoas respondem sobre sua vida pessoal, sobre o futuro, sobre a morte. Eu responderia: Daqui a 50 anos, gostaria de poder estar vivo para rever esse espetáculo; se possível, realizado pelas mesmas pessoas, com a mesma energia e a mesma alegria com que se apresentam hoje.


Miguel Leocádio Araújo





[Obs.: Este vídeo da peça está disponibilizado no canal de YT do Grupo Bagaceira. Apesar de ser interessante ver o vídeo, para quem não mora em Fortaleza ou não pôde ir ver a peça, nada substitui a experiência de estar ali, vendo de perto tudo isso que o vídeo aponta como acontecimento em cena.]

quarta-feira, 22 de junho de 2016

"INTERIOR", EXPERIÊNCIA DE ESPECTADOR (Parte I)



Nesse junho de 2016, vi o espetáculo "Interior", do Grupo Bagaceira, na Casa da Esquina, com direção Yuri Yamamoto. Já o tinha visto duas outras vezes em 2014 em dois espaços diferentes, uma delas no Festival de Teatro de Fortaleza. Mas dessa vez fui com minha avó, minha mãe e uma tia. Nas duas outras experiências, eu já havia ficado impressionado com a fluidez do texto e com o fato de as personagens se parecerem com pessoas que conheço. Ir acompanhado com mais duas gerações diferentes de minha família foi uma experiência bonita.

O texto de Rafael Martins é todo ele poesia, um carinho no espectador, que ri, se emociona, pensa na vida, pensa nas pessoas que não estão mais aqui e pensam no futuro... A elegância poética leva a uma delicadeza na condução da cena, o que torna temas espinhosos muito mais leves. Nesse sentido, o texto parece querer sinalizar que é preciso aprender a lidar com as nuances escabrosas da vida da maneira mais terna ou é preciso aprender a conviver com o que não podemos controlar – e nessa tarefa, a ideia da experiência acumulada na velhice é o vetor encontrado pelo dramaturgo para materializar tais assuntos nas personagens que vão se construindo com suas histórias, na interação com o público, tratando de assuntos diversos.


Temas como a proximidade ou a certeza da morte, as perdas ao longo da existência, o não poder fazer retornar ou reviver as pessoas que amamos e que se foram, entre outros vão sendo costurados como se todos estivéssemos participando de uma conversa de cadeiras na calçada. Nesse aspecto, o fato de a peça ser encenada na Casa da Esquina (e esse nome agrega simbologias ao espetáculo) se diferencia dos outros espaços (teatros no sentido mais usual da palavra), pois parece que estamos ali por perto dessas personagens oriundas de cidades do interior (ou de alguns bairros da capital que milagrosamente ainda mantêm a prática das conversas com cadeiras na calçada).

A proximidade e o contato direto e muito próximo com as atrizes (Samya de Lavor e Tatiana Amorim) em cena, trocando palavras, olhares e objetos causaram, pelo menos em mim, a sensação de reviver experiências similares de interação com pessoas idosas, quer fossem de minha família ou da vizinhança dos bairros onde morei. A localização de cada uma das atrizes ladeadas pelo público numa estrutura de arquibancada em central total – duas arquibancadas frente a frente com corredor-palco no meio – favorece um tipo de movimentação em cena em que atrizes e público ficam num mesmo plano, como se todos fossem personagens.

Mesmo o texto tendo seu andamento cênico próprio – amparado no argumento desenvolvido no texto de Rafael Martins, por sua vez amparado na ideia de lembrança, de tempo e de passagem do tempo e tudo o que isso traz à experiência humana –, há um espaço muito interessante para a improvisação. Espaço esse que é preenchido pela competência das atrizes em exercer a sua presença de espírito, não perdendo oportunidades de interagir com o público por meio de elementos diversos: um pedaço de bolo que é distribuído logo de início (elemento da partilha que conduz a uma cumplicidade com aquela encenação, quase uma comunhão com o teatro que ali se inicia); pedaços de papel com nomes de avós escritos pelo próprio público; fotos distribuídas ao público; fotos registradas nos celulares dos presentes; e o próprio exercício do ato de conversar .

Aliás, o apelo aos celulares dos presentes conjuga-se com o cartão de memória de 2 giga mencionado na peça. Esses elementos materiais da contemporaneidade fazem contraponto com objetos que remetem a tempos passados, ao mesmo tempo em que promovem uma tensão (ou provocação do riso) pelo uso de um vocabulário que hoje é associado a um sabor de antiguidade, expressões que são do interior, mas em larga medida são usadas ainda com naturalidade pelos que estão mais idosos.

[continua...]

Miguel Leocádio Araújo

Obs.: A foto foi fisgada do site do Grupo Bagaceira

Trilha sonora (que não é escolha minha, mas reproduz uma das canções que é reproduzida no ambiente antes do espetáculo):