sábado, 11 de fevereiro de 2017

JOGANDO CONVERSA FORA, DE IGNEZ FIUZA



Há pouco mais de um ano, falecia Ignez Fiuza. Fui seu professor de “escrever”, como ela gostava de dizer, de março de 2009 a dezembro de 2015, primeiramente no curso “Minha vida, minha história – Escrevendo memórias”, oferecido no Espaço Viva da FA7. Depois o curso desvinculou-se da instituição e ganhou o espaço do atelier de Ignez, até chegar ao salão de festas do prédio em que a aluna morava, na Praia de Iracema, em Fortaleza. Junto com ela, um conjunto de pessoas interessadas em escrever suas lembranças, exercitar a memória e discutir formas de escrever conforme o modo de ser de cada um. A maioria delas acima dos 80 anos, com muita disposição para aprender, como a própria anfitriã.

Ignez era uma pessoa muito vivaz, simpática e dinâmica. Eu já a conhecia de vista do La Bohème, galeria-bistrô que ficava nas proximidades de onde hoje é o Mambembe [Obs.: alguns meses antes de partir, Ignez ficou sabendo, com revolta e tristeza, da derrubada de uma centenária árvore que estava em frente ao Estoril. Ali uma escora de ferro havia sido colocada para não sacrificar a árvore, a pedido de Ignez, na década de 80. Ao saber do fato, ela escreveu um texto e publicou-o em algum jornal da cidade denunciando a derrubada compulsória de árvores na cidade pela administração municipal.].

Conheci-a melhor não só pela convivência como também pela leitura dos textos que ela produzia. Esses textos resultaram no livro “Jogando conversa fora”, que tive a tarefa de supervisionar como organizador e revisor. O processo durou quase um ano, entre a decisão de publicar e o lançamento do livro, em fevereiro de 2014. Era nos encontros para discutir o livro que falávamos sobre outros livros, sobre formatos, sobre qualidade literária ou a falta desta, sobre ser simples, sobre se fazer entender, sobre revelar e esconder o que se sabe sobre a cidade, sobre as limitações de disponibilizar lembranças que parecem interessar somente a si. Algumas vezes Ignez ficava insegura quanto ao interesse desse livro. E eu sempre dizia que as lembranças de alguém que circulou em tantas áreas diferentes na cidade interessam, porque, ao falar de suas experiências, ela fala da cidade, tanto mostrando as limitações de uma Fortaleza pouco afeita à arte no momento em que ela iniciou-se com a galeria de arte e o antiquário como indicando que a mentalidade havia mudado um pouco 40 anos depois – e ela ressaltava “um pouco”.



O livro de Ignez é uma conversa. Tem de tudo um pouco: sua genealogia (os Gentil da Reitoria) e histórias de vida; várias situações envolvendo artistas locais, nacionais e internacionais; a dureza de ser uma mulher de negócios numa Fortaleza cuja elite ainda torcia o nariz para a profissionalização da mulher, sobretudo se ela pertencesse a uma certa camada social; o cenário cultural e das artes visuais ao longo de décadas de atuação como galerista e curadora (quando essa palavra não era usada), entre tantos temas que ela desenvolve em textos muito próximos da crônica e têm a intenção tão somente de expressar ideias e a memória de um tempo outro.

Na convivência com Ignez, fiquei sabendo de sua amizade com Tomie Ohtake e sua admiração por Frans Krajcberg; também presenciei sua finesse, seu bom gosto e esmero em receber as pessoas que chegavam à sua casa; sobretudo, observei sua simplicidade no trato com o outro e seu bom humor – e tudo isso está de algum modo impresso no livro que escreveu. Depois de publicar esse livro, Ignez Fiuza ainda produziu dezenas de textos, além dos que ela resolveu não editar nesse livro. Muitos desses textos foram produzidos no curso; outros, ela escreveu porque sentiu vontade, impulso, inspiração. Coisas de quem descobriu que a escrita é uma forma de simbolizar a vida e suas vicissitudes.

FIUZA, Ignez. Jogando conversa fora. Fortaleza: Expressão Gráfica, 2014.

[Essa é minha homenagem à Ignez. Eu, que fui muito mais aprendiz que professor, lembro com alegria de nossas aulas e de seu alto astral.]