quinta-feira, 28 de agosto de 2014

CLARICE LISPECTOR, SUPERSTAR



Um mito não se faz da noite para o dia. E há certos mitos que insistem em contrariar as normas. É o caso de Clarice Lispector, que foi mitificada por uma multidão de leitores e muitos críticos que leram a sua obra (e por vezes também “leram” a sua vida), construindo sentidos ligados ao mistério, ao místico e ao filosófico – para ficar apenas com algumas vertentes –, possibilitando um fenômeno curioso, quando se trata de divulgar nomes da literatura brasileira: o fenômeno da circulação nas redes sociais, por meios de citações diversas.
Algumas das citações atribuídas à CL encontradas nas redes sociais vêm da obra da própria escritora; outras são insistentes atribuições de frases avizinhadas da autoajuda, que, para receberem um verniz intelectualizado (possivelmente na tentativa de minimizar os preconceitos de que a autoajuda é alvo), basta colocar um nome “de peso”. Talvez Clarice seja umas das campeãs de frases de efeito e lições para o bem viver entre os escritores que circulam na internet à revelia de suas próprias obras, o que tem irritado alguns que reagem criando os “contraposters” (se é que podemos chamar assim), nos quais a escritora, mal humorada, aparece rejeitando que tenha afirmado tantas frases que lhe são atribuídas, como decalque incômodo.



Curiosamente, Lispector se posicionou contra rótulos que lhe eram atribuídos. Em Água viva (1973), por exemplo, ela afirma que, ao escrever esse “livro”, estaria criando outra “coisa”, uma ficção, pois gênero literário não a pegaria mais. Ou seja, as leituras que eram feitas no sentido de analisar a obra da autora pelo ponto de vista da estrutura dos gêneros literários (algo comum entre os críticos e professores universitários dos anos 70) provocavam nela uma espécie de fuga ao estabelecido e ao petrificado, numa busca pelo fluido, pelo não enquadrável.
Na sua trajetória, Clarice não cansou de romper as fronteiras dos textos. Muitas de suas crônicas, por exemplo, foram transformadas em contos ou em trechos de romances; assim como trechos de entrevistas, contos e passagens de romances foram parar na coluna semanal de crônicas que ela manteve de 1967 até 1973 num jornal carioca.
Aliás, a descoberta desse trânsito de escritas fez com que pesquisadores, capitaneados pelas editoras, tenham organizado coletâneas de textos diversos de Clarice, oferecendo ao público uma parte até bem pouco tempo desconhecida de sua obra. Foi nesse contexto que surgiram livros que reúnem textos publicados em colunas femininas escritas entre os anos 50 e 60 para três jornais diferentes. Além disso, saíram livros que resgatam inéditos esparsos, desde anotações sobre seus filhos até entrevistas em que ela exercia o ofício de jornalista de modo inteiramente único, entre o despojado e o tímido a um só tempo.
Como se não bastasse, de vez em quando, alguma revista literária estampa a imagem de Clarice em sua capa, apontando para o fato de que ela é sempre solicitada pelos leitores, que não se conformam com a leitura da obra. Eles querem mais... Não à toa, existem três grandes biografias em circulação, sem contar os pequenos livros de Olga Borelli e Berta Waldman que traçam perfis da escritora.
Tudo isso ainda parece pouco. Alguns leitores (e talvez muitos “não leitores”) de Clarice Lispector ainda preferem uma imagem específica dessa escritora que insistia em não querer ser uma “profissional”. À revelia das redes sociais e dos e-mails com supostos textos seus, ela resiste. A leitura de sua obra ainda é uma experiência da qual ninguém sai ileso. Assim são certos mitos...


P.S.: Este texto me foi pedido pelo Jornal O Povo há algum tempo atrás, mas nunca foi publicado.  Reencontrei-o esses dias, fazendo a limpeza no computador. Reli e remendei esse texto, com uma certa vontade de divulgá-lo hoje (28.08.2014), pois, coincidentemente, no dia 26.08.2014, assisti a uma palestra de Elisama Almeida de Oliveira, pesquisadora do Instituto Moreira Salles, no Espaço O Povo de Cultura e Arte, em que comentou a respeito do acervo de Clarice naquele instituto e do site criado pelo IMS contendo um bom material sobre Clarice Lispector.

domingo, 17 de agosto de 2014

A DONZELA DESPREZADA, DE EDUARDO CAMPOS



“A donzela desprezada” faz parte da “trilogia de dramas urbanos”, como denominou Marcelo Costa. A peça foi provavelmente escrita em 1964 pelo cearense Eduardo Campos e encenada pela primeira vez em 1995, juntando-se às conhecidas “O Morro do Ouro” e “A Rosa do Lagamar”, todas ambientadas em Fortaleza.
Quando conheci o texto, por meio do livro Três peças escolhidas (Fortaleza: Edições UFC, 2008), achei o título estranho, meio fora de tempo, quase como se colocasse o dramaturgo cearense entre aqueles de uma longínqua tradição oitocentista. É que o tal título tem um sabor de antiguidade, pelo fato de trazer o vocábulo “donzela”, elemento que nomeia o texto e impulsiona a ação. Um outro fator que lhe confere um perfume de passado é o fato de tratar de uma preocupação bastante comum nas narrativas de outros tempos, em que o temor de permanecer solteira (ou, pior ainda, o pavor de ser desprezada por aquele a quem ama) causava às personagens femininas um sentimento de derrota, tal como acontece à Florzinha (do romance O sertanejo, de José de Alencar) ou à também Florzinha (personagem de Aves de arribação, de Antônio Sales).
Por outro lado, há nesse título um certo tom anedótico. Inicialmente o próprio Eduardo Campos desprezou sua “filha”, guardando a peça nas suas gavetas por mais de 30 anos; ele que estava acostumado a acumular o sucesso de crítica e público com a densidade de alguns de seus dramas. De fato, dos trabalhos que compõem Três peças escolhidas, “A donzela desprezada” é aquele que tem mais cenas que provocam o riso, não deixando, com isso, de ser um drama.
A personagem Amelinha é a rainha de um dos partidos de uma quermesse e vivia às voltas com a cartomante Lolita, para saber se seu amor por Edmundo vingaria. Na dúvida, inicia-se uma sucessão de peripécias encabeçadas por policiais corruptos e jornalistas em busca da notícia escabrosa de última hora. A dúvida, no final, se revela como um erro de interpretação de Amelinha, a moça ingênua que se deixa levar pela palavra e pelo conselho de qualquer pessoa desconhecedora da verdade de sua condição, quer seja sua mãe (Valdelice), o Agente da polícia, o Delegado, o jornalista (Benedito) ou qualquer outro que julgue contribuir para minimizar os males imaginariamente forjados, para obrigar Edmundo a casar com a donzela, que, por sinal, dizia-se não mais tão donzela assim...
Nesse sentido, o tom de crítica alcança as raias da ferocidade, pois ninguém escapa de ser oportunista e mentiroso. A imprensa é representada como uma ave de rapina, que perde o interesse pela presa tão logo tenha arrancado o que interessa para uma reportagem bombástica que acelera a venda de jornais. A polícia é representada como instituição que, em vez de colaborar na solução de problemas reais, incita à mentira e à farsa, desde que tenha sua imagem pública bem cotada naquela imprensa. O oportunismo do querer aparecer a qualquer custo, mesmo que para isso tenha que se manchar a própria reputação, comparece nas figuras de Valdelice e Amelinha de forma ambígua e oscilante. Como drama colateral, surge ainda Lolita, uma cartomante viciada em remédios que acaba falecendo, provocando a mudança de interesses da parte de jornalista e policiais para o fato “quente” do dia. E o suposto drama da donzela desprezada se apaga para dar lugar a outro.
Esse enredo é mostrado com uma alternância de cenas mais sérias e outras quase burlescas, com diálogos que mostram a podridão do ser humano ao transformar verdade em ficção e vice-versa; nas palavras de Marcelo Costa, trata-se do texto de Eduardo Campos mais distanciado do real, provavelmente pelo fato de o dramaturgo carregar nas tintas provocativas e críticas do comportamento humano.
Nunca vi uma encenação desse texto, fico somente imaginando como seria. Alguns elementos do texto ainda me soam bem atuais...

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

FRAGMENTAR UM DIÁRIO



quatorze

A cidade tem o horizonte encurtado: o mar está solto e o céu muito perto de nós. Um aviso: você precisa cobrir bem o seu corpo, as mãos, as orelhas, os pés, a barriga, o pescoço e as costas. Uma jaqueta jeans, por exemplo, se desmancha inteira fio a fio com o tempo. A cabeça é uma forma de domínio, de poder, ela vem e pode arrancar o seu coração. O homenzinho corcunda olha e tenta enxergar fora demais do sertão. Agora tudo é possível.



Essa é uma das partes que compõem Nada não [um diário], de Manoel Ricardo de Lima e Carlos Augusto Lima, lançado em setembro de 2011 pela Escola SESC de Ensino Médio (Rio de Janeiro), como projeto da Incubadora Cultural, resultante do Projeto de Residência Cultural realizado na 1ª Aldeya Yacarepaguá em setembro de 2009. E eu fragmentei esse diário no dia 14.08.2014, para publicar no dia 15.