segunda-feira, 23 de novembro de 2009

ENTREVISTA NO BLOG DA EDIÇÕES DEMÓCRITO ROCHA

No blog da Edições Demócrito Rocha, o jornalista Henrique Araújo (não, ele não é meu parente) publicou uma entrevista sobre a materialidade dos livros, tema que interessa enormemente, sobretudo quando se fala que o livro está em vias de ser definitivamente sepultado pelas caixinhas eletrônicas que acumulam palavras de não sei quantos mil autores. Não pedi autorização nem ao Henrique, nem à Fundação, mas a entrevista está aqui.

AS CURVAS DO LIVRO

Alguém aqui compra livro porque, de passagem por alguma estante abarrotada de títulos, se sentiu atraído por aquele de capa vermelha e letras em alto relevo? Ou, entre os volumes espalhafatosos empilhados na entrada da loja, gostou daquele de designer sóbrio, num preto fosco e letras pequenas? Antigamente, uma resposta positiva a essas perguntas seria acompanhada de leve porção de vergonha. Afinal, foi-se o tempo em que o corpo do livro, seu suporte físico, era aspecto subestimado.
Para o professor de literatura e pesquisador Miguel Leocádio, hoje as editoras têm tanto cuidado com a “materialidade do livro” quanto com o seu conteúdo. Mesmo as pequenas casas editoriais vêm investindo bastante no desenho gráfico dos livros. Como exemplo, ele cita as editoras Cosac Naify e Demócrito Rocha. Em entrevista ao blog, Miguel explica por que a materialidade é importante. Longe de constituir um dado irrelevante da equação que descreve o interesse pela leitura, é ela a grande responsável pela atração primeira, desempenhando uma função que posteriormente ficará inteiramente a cargo da palavra: a de seduzir constantemente o leitor. (Henrique Araújo)
Como esse corpo físico do livro se relaciona com as ideias que ele transporta?
Miguel Leocádio Araújo – Em geral, esse corpo físico (que em geral chamo de “materialidade dos livros”) pode ou não se relacionar com as ideias, mas quando ocorre uma associação, desde que bem realizada, acaba sendo um elemento a mais para atrair ou instigar o leitor. Um exemplo disso é o projeto gráfico de Suzana Paz para o livro Vende-se uma família, de Socorro Acióli (Edições Demócrito Rocha, 2007). O livro foi projetado de tal forma que o leitor tem a impressão de estar com um objeto antigo em suas mãos; e esse tipo de associação não vem apenas pela história em si, mas também pela coloração do papel, pelo estilo das ilustrações e pela capa, elementos que servem de complemento à trama, que se passa no século XIX. Por outro lado, há materialidades que se distanciam das ideias veiculadas pelo livro, mas permanecem atraentes, pelo cuidado com que são tratadas pelos profissionais que trabalham no processo de elaboração do produto. Portanto, uma materialidade que é criada para valorizar um texto em livro depende da sensibilidade e do envolvimento do profissional com as ideias do autor, mesmo que para se distanciar delas.
Como se define a materialidade de um livro?
Miguel – A partir da necessidade de colocar um produto no mercado que tenha capacidade de seduzir um leitor também por meio de sua conformação concreta. Aquela ideia de que um livro muito bem cuidado é artefato para bibliófilos ou para colecionadores de livros de arte já foi superada. Aliás, num tempo em que os textos e as idéias ganharam o espaço virtual, a indústria do livro tem repensado as maneiras de oferecer seus produtos aos consumidores, o que não é novo, pois tem dependido muito dos avanços tecnológicos no campo da impressão, na fabricação de papel, no uso de pigmentos e materiais diversos (e, em alguns casos, inusitados). Quando se lança um material novo que pode ser aproveitado em objetos impressos, experimenta-se, a título de novidade, posteriormente tornando-se algo generalizado na indústria do livro. O que me interessa especialmente é a maneira como as profissionais das artes gráficas encontram soluções as mais diversas para tornar o livro uma experiência completa: visual e tátil, prazerosa de ler, ver e tocar.
Esse aspecto já foi um dia subestimado?
Miguel – Sim, isso já foi muito subestimado e, em muitos casos, ainda é. Quanto mais simples e com menos recursos se fabrica um livro, mas barato ele se torna, em tese, embora isso não diminua o valor do texto que ele contém. Dou como exemplo as editoras francesas Éditions des Femmes, Tel, Gallimard ou Les Éditions de Minuit, bem como as almãs Reclam ou Suhrkamp, que têm coleções inteiras com pouquíssimas ilustrações (ou nenhuma), em geral apenas na capa, usam papel barato (muitas vezes, assemelhando-se ao papel jornal), já que têm como carro-chefe de sua produção os livros de bolso. Mas isso ocorre porque o público dessas editoras é cativo, o que garante as vendas, sem maiores necessidades de investimentos em atrativos gráficos, o que não quer dizer que não existam nesses países editoras que tenham uma enorme preocupação com a materialidade dos livros e suas inovações.
Hoje, que importância tem?
Miguel – Hoje a importância da materialidade é enorme. Há autores que se envolvem no processo de “formatação” gráfica do livro. No caso, por exemplo, dos livros destinados ao público infanto-juvenil, os investimentos são altos, fixando cada vez mais a ideia de um livro de texto bom e de apresentação gráfica atraente. Afinal de contas, um livro é um objeto com o qual as crianças podem passar muitas horas, quer seja por ser um paradidático adotado por uma escola, quer seja por prazer de ler mesmo; logo, quanto mais prazeroso for estar com um livro em mãos, mais o texto a ser lido ganha. É claro que esses investimentos extrapolam o universo da literatura infanto-juvenil. É possível encontrar hoje até livros acadêmicos com uma apresentação gráfica primorosa.
Dê exemplos de obras que se destacam nesse campo.
Miguel – Os livros da Cosac Naify, em geral, são exemplares nesse sentido. A coleção Fábrica de Leitores das Edições Demócrito Rocha é primorosa, bem como os livros de poesia infantil da gaúcha Editora Projeto também são muito bonitos. Ultimamente, no Ceará, tenho percebido uma preocupação dos autores com a materialidade do livro. Eu destacaria a novela de Mariana Marques, Transatlântico, pela editora La Barca; o livro “triplo” de Júlio Lira, que envolve três gêneros diferentes (conto, poesia e crônica), num projeto gráfico absolutamente inovador, que você manipula meio de maneira muito lúdica, virando a posição do objeto, para poder iniciar a leitura de cada um dos três livros contidos num mesmo artefato.
Visite o blog das Edições Demócrito Rocha AQUI.


sexta-feira, 23 de outubro de 2009

DE UMA PÁGINA DE ANA CAROLINA BEDÊ


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Alguns amigos conhecem as minhas descobertas atuais. Ou redescobertas. Le temps retrouvé, mas na perspectiva do futuro do presente, o que nem sempre é possibilidade, mas condição de existência.


Relendo Semana (São Paulo: Hedra, 2007), o projeto amarelo-ouro organizado por Natércia Pontes (cujos soluços escuto com o sangue pulsando, solidário), paro em duas linhas de Ana Carolina Bedê, que imediatamente serviriam de epígrafe a um roman-fleuve que nunca virei a escrever, por pura preguiça ou desconhecimento de causa. A “simpleza” (que tomo de empréstimo; com licença, Ana Carolina) das duas linhas me trouxe a sensação imediata de imaginar as possibilidades de beleza da fala que precisa ser completada, mas que permanece flutuando no silêncio da página. Veja só:


“Com a simpleza de seu brilho veio pedir.
― Brilha mais anel, mais, que ela te aceita.”
(Do conto “Será que algum dia vira canção?”, de Ana Carolina Bedê)


E virou canção no meu ouvido. E um espanto olhando pra folha.

sábado, 5 de setembro de 2009

Materialidades 1 - TRANSATLÂNTICO, de Mariana Marques


Antigamente, ao ver alguém com livro bonito, bem cuidado e diferente nas mãos, era comum ouvir de alguém que se pretendia “intelectual de verdade”: “Ah, mas isso aí é só pra enfeitar estante...”. Pois bem, depois que as letras e as palavras foram ganhando materialidades virtuais, sem a mesma concretude do objeto, o livro teve que se reinventar, exatamente por meio de um trabalho que associa palavra e arte, no trabalho de escritores e profissionais e artistas da área gráfica, atiçando ainda mais o “amor táctil”, sobre o qual falou uma vez Caetano Veloso.

Quem frequenta este blog sabe que, vez por outra, tenho me manifestado a respeito da materialidade dos livros, assunto que me interessa desde os tempos do Mestrado em Literatura Brasileira (UFC); aliás assunto que aprendi com Clarice Lispector, que de certa forma me mostrou que as diversas materialidades do livro falam tanto quanto os textos que eles contêm. E, sim, eu gosto de livros bonitos. Definitivamente. E eles enfeitam minhas estantes, sim, mas também enfeitam o meu tempo livre, ao dedicar-lhes uma leitura prazerosa, sonhadora e atenta. Sempre nesta ordem. Daí é que vem esta ideia fixa, o livro como objeto, e uma vontade, escrever sobre isso. E começo.

O primeiro escolhido é uma novela: Transatlântico, de Mariana Marques (Ed. La Barca, Fortaleza, 2009, 56 p.), que descobri neste ano de 2009 e cujo texto devorei muitas vezes, respirando toda a sua poesia verbal (o que não minimiza o fato de ser uma narrativa em prosa), ao lado da poesia de uma composição gráfica pensada e arquitetada artisticamente (primoroso projeto gráfico de Álvaro Beleza). O livro foi feito como a lembrar os passaportes e os moleskines, numa associação clara às ideias de viagem, de travessia e de ultrapassagem do infinito (sugeridas pelo próprio título da novela) e de registro (a conformação concreta do objeto que contém esta narrativa).
A capa, elaborada num tipo de material que talvez seja o mesmo das capas de passaportes (percalux), é num azul marinho bem escuro, remetendo ao oceano mais profundo e subjetivo, quem sabe imaginário. O título vem gravado no centro, em letras douradas, sem menção ao nome da autora, conformando a preponderância do objeto à deriva, no meio de tudo.

Abrindo o livro, as páginas (& folhas) da novela são organizadas em segmentos (ou, se quiserem, capítulos) todos nomeados com a mesma economia lírica que atravessa o texto. Entremeando cada segmento, uma vinheta emoldurando seu título. Estas vinhetas representam imagens diversas, apresentadas em cores esmaecidas e tons pastéis, que me fizeram lembrar a memória envolta numa espécie de halo que vai apagando a nitidez das lembranças de coisas vividas ou inventadas.
A apresentação material de Transatlântico provoca a ideia de envolver a lírica narrativa de Mariana Marques numa experiência concreta com a delicadeza. Imagine ler esse trecho, num livro com a aparência que descrevi: “vejo as despedidas de perto e o desespero contido e todas as coisas que se puseram a perder junto à tentativa (do viver e do chorar)”.
Ler assim é um mergulho em imagens de nuvens.

[MARQUES, Mariana. Transatlântico. Fortaleza: La Barca, 2009]

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

DE UM LIVRO BONITO A VALER: VINTE E SETE DE JANEIRO

De um dos livros do poeta Carlos Augusto Lima, retiro alguns versos que me fizeram parar e olhar a parede branca do quarto, sem nada, lembrando das minhas próprias estações:

falta de tudo nesta cidade:estações,
estações, estações.
escute a tácita recusa em subir as compras.
e nós moramos num mundo bonito.




(LIMA, Carlos Augusto. Vinte e sete de janeiro. São Paulo: Lumme Editor, 2008. p. 39)

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

INCANSÁVEL, IMPLACÁVEL: ADOLFO CAMINHA NA CIDADE

Essa vai para os meu alunos, às voltas com a Maria do Carmo, da Rua do Trilho, e seus devaneios de garota meio sonsa meio sonhadora, numa cidade cheia de hipocrisia. Foi um texto que publiquei no jornal O Povo, em 2007, quando completavam-se 140 anos do nascimento de Adolfo Caminha e 110 anos de sua morte. Este texto sofreu algumas poucas alterações (como é difícil alterar o estado das coisas...).


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Quando Adolfo Caminha retornou do Rio para Fortaleza, chegava numa situação relativamente confortável: era um jovem oficial da marinha (aos 21anos), já tinha dois livros editados e guardava a experiência de ter observado a vida literária e cultural da Corte e mesmo dela ter participado, através de algumas publicações esparsas em periódicos. Não é de espantar, portanto, que aquele jovem rapidamente se inserisse na vida cultural local, contribuindo para movimentá-la, numa atitude que poderia ser chamada de “esforço intelectual cearense”, algo que parece ter se mantido na tradição, principalmente quando lembramos de como é difícil fazer literatura (e publicar e se fazer ouvir) por estes lados.
Sânzio de Azevedo, na mais completa biografia do autor até hoje escrita, registra as diversas movimentações do escritor em torno da vida literária na capital da província. Entre a sua participação em agremiações literárias e a constituição de “afinidades eletivas” no campo das idéias, muito passou pelos olhares caminhianos, deixando a impressão de um artista-intelectual incansável no que concerne ao debate de ideias, mas também numa área que demandava esforço ainda maior: as práticas de divulgação da produção literária. E aqui Caminha terá uma lição a aprender: a necessidade de lidar com as adversidades de um meio nem sempre acolhedor às práticas culturais letradas, algo de que artistas e intelectuais têm reclamado, desde participantes dos mais prestigiosos grêmios literários do século XIX até representantes da contemporaneidade.
Nem por isso, Caminha desistiu de trabalhar pelas letras e ideias. Sim, porque esta parecia ser a sua vocação: trabalhar, apesar de tudo. Por exemplo, em 1889, meses depois de sua chegada aqui, já publicava nos jornais locais, tais como A Avenida, criado por Pápi Júnior (que se tornará amigo do autor de A Normalista) e outros homens de letras do período; ou no jornal Libertador, então um fórum de idéias e de literatura. Participará da Padaria Espiritual, a mais conhecida agremiação do século XIX, atendendo pelo “nome de guerra” Félix Guanabarino. Além disso, Caminha teve duas experiências como editor e jornalista na cidade: a Revista Moderna (1891) e O Diário (1892). Estes espaços criados, embora efêmeros, serviram de base e palco para a constituição de uma imagem da qual gozou entre seus contemporâneos: a do autor polêmico e combativo. Não à toa, Caminha entabulará contendas literárias – as famosas polêmicas – com alguns de seus companheiros de ofício, como Antônio Sales e Rodolfo Teófilo, causando repercussões nos meios letrados. Por último, ainda é de lembrar seu envolvimento com o Centro Republicano do Ceará, mostrando estar afeito a ideias políticas modernas em seu tempo.
Juntem-se a estas atividades as reuniões e conversas literárias com os amigos que aqui conquistou, os cafés tomados ao sabor da literatura e os escândalos na vida pessoal (seu envolvimento com uma mulher casada), formamos um retrato de escritor que se inscreveu visceralmente no cotidiano da cidade, por meio da cultura letrada, permeado por um temperamento destemido e empreendedor. O fato de Caminha sair do Ceará, voltar ao Rio de Janeiro, mas ainda manter um contato efetivo com a cultura local, nos dá a medida de um escritor que não deixou de pensar em deixar sua marca na cultura da província. Que A Normalista fale por si... Sendo uma história de luta contra as adversidades e tentativa de superação num meio hipócrita e desumano, poderia sintomatizar as lutas de um cidadão e escritor em favor da cultura e da convivialidade honesta. Mesmo que, para isso, tivesse que ser ranheta ou até implacável.

sábado, 11 de julho de 2009

MATERIALIDADE DOS LIVROS

Desde que fiz meu mestrado em Literatura Brasileira, algo me intriga bastante: a tendência de uns tempos para cá de surgirem livros que subvertem o formato convencional do que todo leitor imagina como um "livro". Daí me veio a idéia de falar sobre esse assunto. Na minha dissertação de mestrado, que era sobre Clarice Lispector, já toquei neste assunto do livro como objeto cuja materialidade propõe significações, algumas vezes muito próximas do texto que apresenta, outras nem tanto.

Mas este meu interesse se ampliou e acabou que foi virando uma espécie de pesquisa informal, que vai se configurando ao sabor do tempo. Nos últimos dois anos, sempre que encontro algum livro (de preferência prosa ou poesia, embora não exclua necessariamente outras vertentes), adquiro e começo a refletir sobre eles.

A partir destas aquisições, surgiu-me a idéia de começar a ler estes livros no que os textos podem oferecer como sentido, mas também "lendo" a materialidade destes livros, como algo que "diz" coisas.

então, se você lê este blog e sabe de algum livro que se enquadre numa definição de formato inusitado, indique-o, pois quero muito formar um acerto com experiências materiais de diferentes procedências.

Agradeço.


sexta-feira, 10 de julho de 2009

FRAN MARTINS: MANIPUEIRA (CONTOS DO JUAZEIRO DO PADRE CÍCERO)


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Muitas pessoas podem até nunca ter ouvido falar em Fran Martins (1913-1996) (e isso não quer dizer muita coisa – outro dia uma estudante universitária de um curso da área de ciências humanas me perguntou quem havia sido Cecília Meireles...). Ainda assim, muitas pessoas da área jurídica sabem quem foi ele pelos livros jurídicos que escreveu. E ainda há as pessoas que lidam com literatura produzida no Ceará, que têm alguma idéia do que ele fez.
Então, quando se diz alguma coisa sobre Fran Martins e sua literatura, é inevitável mencionar A rua e o mundo (1962) ou Dois de Ouros (1966), duas de suas conhecidas narrativas longas, através das quais o escritor representou a cidade do Crato, em seu cotidiano e seus dramas. Aliás, ao falar da ficção de Fran Martins, a menção à sua obra romanesca é algo natural, já que ele publicou mais romances que livros de contos.
Mas curiosamente o escritor iniciou e findou sua carreira como contista, com Manipueira (1934) e A Análise (1989), respectivamente. Além destes dois volumes de contos, ainda publicou Noite Feliz (1946), Mar Oceano (1948) e O Amigo de Infância (1960). Com cinco livros de contos, Fran confirma o que já constitui seu foco de interesse no romance: a representação da vida do interior cearense, sobretudo o Cariri, como uma espécie de microcosmo de uma realidade com aspectos comuns ao Nordeste como um todo.
Somente em A análise, temática e linguagem não se voltam para aspectos regionais, como observa Rachel de Queiroz, no texto de apresentação do livro, complementando que Fran teria atingido seu primor na construção do texto curto. Mas as suas outras coletâneas de contos abordam algum aspecto da mentalidade e da cultura nordestina, representando-as à maneira da principal tendência da ficção praticada por sua geração, conhecida como a do “Romance de 30”, da qual fez parte a própria Rachel, além de Jorge Amado, José Lins do Rêgo, Graciliano Ramos, entre outros.
Estes autores preocuparam-se principalmente com certos problemas sócio-econômicos da região (seca, decadência da cultura açucareira, coronelismo, cangaço, fanatismo religioso, etc.) que, num primeiro momento, acreditavam ser os de maior alcance cultural; daí a necessidade de praticar uma narrativa mais aparentada com o Realismo-Naturalismo, atualizando-o criticamente, ancorando-se num compromisso de aderir à linguagem do povo.
O primeiro livro de Fran Martins afirma uma posição ligada à escrita de “invenção do Nordeste”, para usar uma expressão do historiador Durval Muniz de Albuquerque Jr. (A invenção do Nordeste e outras artes, Cortez Ed., 2001), através da qual reavalia o discurso da ficção nordestina de 30, apontando sua heterogeneidade, mas também mostrando a possibilidade de uma intencionalidade comum aos diversos escritores e discursos. Este discurso de “invenção do Nordeste”, que se compromete com temas e imagens específicas, pode ser visto como um dado importante na compreensão de Manipueira, estréia de Fran Martins não só no conto, como na própria literatura “livresca”.







A sua mais recente edição (Ed. UFC, 1999) mantém, na sua materialidade, os elos da tradição que o próprio subtítulo (“Contos do Juazeiro do Padre Cícero”) demanda. Reproduz-se o fac-símile da ilustração de capa para a modesta primeira edição, em que um rosário se enrola a um punhal, de onde pingam algumas gotas de sangue. Já aqui tem-se a referência a duas idéias exploradas no livro: a religiosidade bastante marcada naquele espaço, sendo traduzida pelo autor em fanatismo religioso; a violência das relações sociais, em que a morte praticada por jagunços, capangas, cangaceiros e matadores é uma constante, algumas vezes corporificando a ambivalência de seu ambiente cultural: violento, porém devoto.
A maior parte dos dez contos enfeixados no volume traz personagens que correspondem a esta referencialidade. De um lado, o leitor depara-se com beatas e beatos, romeiros, tiradores de terços, devotos de toda ordem; sendo que o Padre Cícero está onipresente em todas as narrativas, como a anunciar a permanência praticamente icônica de sua figura no imaginário cultural nordestino, como espaço simbólico de produção de significados e imagens que, pela sua força, alcançam usos no cotidiano dos sujeitos que de alguma forma se utilizam dessa imagem e de seus possíveis significados.
Por outro lado, o leitor encontra Lampião e seus cangaceiros, jagunços “em formação”, “cabras” matadores (porém devotos), coronéis encomendadores de mortes, etc. O autor junta dois fenômenos que geram um amálgama temático polêmico: o fanatismo religioso associado à violência das relações sociais em geral, com incursões pelo imaginário do cangaço, que, por sua vez, volta seus poucos temores para o respeito à ordem religiosa e a seus representantes.
Ao ler estes contos, pode-se até não gostar, por causa da temática, mas o clima de tensão conseguido em cada um dos textos me diz que o contista atingiu algo bem interessante: sugerir que violência e religião passeiam inesperadamente juntas. Quer ideia mais atual?
Miguel Leocádio Araújo

quinta-feira, 2 de julho de 2009

DIA DE SOL COM POEMA

Acordar em Fortaleza numa quinta-feira de sol (embora seja inverno, oficialmente) é parecido com um poema de Sérgio Caparelli, chamado A PRIMAVERA ENDOIDECEU... Olhe:


O poema foi lido e retirado da coletânea POESIA FORA DA ESTANTE (que título bom!), da editora Projeto (de Porto Alegre), edição coordenada por Vera Aguiar, Simone Assumpção e Sissa Jacoby, com ilustrações de Laura Castilhos, em 2006.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

A menor mulher do mundo

"Ali em pé estava, portanto, a menor mulher do mundo. Por um instante, no zumbido do calor, foi como se o francês tivesse inesperadamente chegado à conclusão última. Na certa, apenas por não ser louco, é que sua alma não desvairou nem perdeu os limites. Sentindo necessidade imediata de ordem, e de dar nome ao que existe, apelidou-a de Pequena Flor. E, para conseguir classificá-la entre as realidades reconhecíveis, logo passou a colher dados a seu respeito."

LISPECTOR, Clarice. A menor mulher do mundo. In: ______. Laços de família. 24. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1991. p. 88.

No Ceará, tem sido divulgada a imagem e a história de uma mulher de 28 anos que não se desenvolveu como pessoa adulta, por uma suposta disfunção na tireóide. Ela tem a aparência do que poderia lembrar vagamente uma criança de colo, não fossem suas feições e alguns de seus gestos que denunciam que ali se encontra alguém que não é um bebê de colo. Ela não foi encontrada por um explorador francês, mas pela produção de programas de auditórios locais, sendo depois "redescoberta" por programas jornalísticos ou de "variedades"... Logo deram-lhe um nome, na tentativa de uma ordem ao que existe, apelidando-a de Mulher-Bebê. E logo os apresentadores trataram de coletar dados a respeito não dela (que nada consegue contar, porque não fala), mas do que poderia ter ocasionado tal processo (às avessas) de estar do modo como algumas pessoas afirmam desejar (e tenho ouvido sempre isso de alguns amigos): ser para sempre criança... E nisso, a Mulher-Bebê tornou-se uma imagem da curiosidade atroz de todos nós, ou de pelo menos alguns.

"A fotografia de Pequena Flor foi publicada no suplemento colorido dos jornais de domingo, onde coube em tamanho natural. Enrolada num pano, com a barriga em estado adiantado. O nariz chato, a cara preta, os olhos fundos, os pés espalmados.
Nesse domingo, num apartamento, uma mulher, ao olhar no jornal aberto o retrato de Pequena Flor, não quis olhar outra vez 'porque me dá aflição'.
Em outro apartamento uma senhora teve tal perversa ternura pela pequenez da mulher que - sendo tão melhor prevenir que remediar - jamais se deveria deixar Pequena Flor sozinha com a ternura da senhora.
Em outra casa uma menina de cinco anos de idade, vendo o retrato e ouvindo os comentários, ficou espantada. Naquela casa de adultos, essa menina fora até agora o menor dos seres humanos. E, se isso era fonte das melhores carícias, era também fonte deste primeiro medo do amor tirano. A existência de Pequena Flor levou a menina a sentir, numa primeira sabedoria, que 'a desgraça não tem limites'."

LISPECTOR, Clarice. o mesmo conto, com algumas supressões.

Imagino as reações das pessoas diante da tela do televisor, ao ver a Mulher Bebê. Eu que pensava que a literatura, neste caso, falara do que não existia entre nós.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

CLARICE LISPECTOR E O FUTEBOL: A HORA DA ESTRELA SOLITÁRIA (3)

Como se não bastassem as entrevistas e toda a mitologia que envolve o nome de Clarice Lispector (com ou sem futebol), numa crônica de 1968, ela afirmou ser leitora do famoso e admirado cronista esportivo Armando Nogueira pelo fato de ele "escrever bonito", mesmo que não entendesse todo o jargão descritivo de uma partida. Esta crônica, por sinal, chama-se “Armando Nogueira, futebol e eu, coitada” e foi escrita em resposta a um comentário de Nogueira em que dizia que trocaria uma vitória de seu time por uma crônica de Clarice sobre o futebol... Pois bem, Clarice, em tom sério, beirando a dramaticidade, escreve que não perdoaria, nem por brincadeira, que se trocasse uma vitória do Botafogo por um romance inteiro dela, sobre futebol... Virtudes de torcedor devotado? Ou melhor, de uma torcedora devotada?

Apesar de sempre dizer que não entendia de futebol, ela entregava-se com uma "ignorância apaixonada" ao seu time e ainda tinha que contemporizar as divergências entre um filho botafoguense e outro flamenguista, tarefa nada fácil para quem já optara pelo primeiro time. O mais curioso é que Clarice relatou que, na verdade, gostava de assistir a jogos pela TV e que só uma vez na vida foi ao estádio para ver, de "corpo presente", uma partida de seu time. Segundo sua própria afirmação, isso a tornaria uma "brasileira errada".

E para não dizer que Clarice Lispector não colocou em ficção algo relacionado ao futebol, basta lembrar que no conto “À procura de uma dignidade”, de Onde estivestes de noite (1974), a personagem, Sra. Jorge B. Xavier, inicia sua via crucis perdida nas galerias do Maracanã, em busca de uma conferência qualquer que não sabia ao certo se ali se realizaria. Desorientada, a protagonista chega à área "verdadeira" do estádio: o campo. Mas, na verdade, encontra um "espaço oco de luz escancarada e mudez aberta, o estádio nu, desventrado, sem bola nem futebol. Sobretudo sem multidão." A nudez daquele espaço é a própria imagem do que há de mais triste no futebol, para os torcedores mais filosóficos: um estádio vazio. E Clarice inesperadamente captou esta imagem, mesmo só tendo ido uma única vez na vida a uma partida de futebol in loco. Coisas de artista...


Escrito por Miguel Leocádio Araújo

sábado, 30 de maio de 2009

CLARICE LISPECTOR E O FUTEBOL: A HORA DA ESTRELA SOLITÁRIA (2)

Em entrevistas e crônicas, Clarice Lispector chegou a se declarar absoluta torcedora do Botafogo.

Ao entrevistar Marques Rebelo, ela, para desviar-se de um assunto sobre o qual aparentemente não gostava de falar – a sua alardeada densidade como ficcionista –, pergunta qual era o time de Rebelo, que rapidamente se afirma como torcedor do América (“A única paixão de minha vida”, segundo a sentença do entrevistado). Clarice revela que é Botafogo e é logo chamada de “cartola” pelo escritor, no que ela simplesmente cala, como se consentisse... Era o final da década de 1960; e a entrevista era para a sessão "Diálogos possíveis com Clarice Lispector", da revista Manchete. Ao que parece, dialogar sobre futebol também era possível para ela, que era uma escritora considerada difícil...

Em Entrevistas (Rocco, 2007), publicação que reúne a maior parte das conversas aparecidas em De corpo inteiro (1975), mais 19 inéditas em livro, Clarice encontra-se com dois ícones do futebol brasileiro: Zagallo e João Saldanha.

Ao dialogar com o primeiro, a entrevistadora, revelando uma franca admiração, inicia por afirmar: “Sendo você bicampeão mundial e bicampeão carioca, Zagallo, eu, se dependesse de mim escolheria você para técnico da seleção brasileira.” Zagallo mostra-lhe o braço com os pêlos arrepiados de emoção. O gelo estava logo quebrado, para começo de conversa. E ela nem imaginava o que Zagallo se tornaria para a Seleção Brasileira décadas depois.

A entrevista, realizada num banco do jardim da sede do Botafogo, foi animada a risos e cumplicidade, já que a escritora estava no quartel-general do seu time do coração (selvagem?), às vezes sendo instada a sair da condição de entrevistadora à de entrevistada, mesmo que escolhesse o que responderia ou calaria. Outras vezes, ela interfere nas respostas de Zagallo (com afirmações, entre parênteses, sobre si mesma), certamente estimulada pelo papo franco e descontraído.

Algumas das perguntas ao atleta eram completamente genéricas e difíceis de responder, tais como: “Zagallo, qual é a coisa mais importante para você?”, “Qual é a coisa mais importante para você como pessoa?” ou “O que é o amor, Zagallo?” Já outras dirigiam-se mais especificamente ao esporte: “Zagallo, qual seria a melhor tática, o melhor sistema para o selecionado brasileiro na próxima copa?” Entre brincadeiras e assuntos mais sérios, como o futebol, o diálogo entre Clarice e Zagallo dá a medida de como a escritora vibrava com o esporte.

Com João Saldanha a conversa chegou a detalhes técnicos, já que o entrevistado da vez era treinador da seleção brasileira que iria para a Copa de 1970, quando seríamos tricampeões. Clarice cita vários jogadores, como Garrincha e Pelé. Uma de suas perguntas está bastante próxima dos paradoxos encontráveis em muitas de suas obras, sendo bastante curiosa: “Por que a bola não parece redonda para todos? Pois quando chega junto de certos jogadores ela é extremamente quadrada.” Esta foi uma maneira clariceana de evocar a pouca habilidade de certos jogadores à época. E a resposta de Saldanha foi extremamente objetiva, o que satisfaz a entrevistadora: “Futebol é uma arte e em arte prevalece o talento. Uns têm mais, outros menos. Eis a razão.” Um outro aspecto era o registro do conhecido lado engraçado de João Saldanha. Ao ser perguntado pela ficcionista se ele acreditava que se podia ganhar “no grito”, ele responde com desenvoltura: “Se isto fosse possível, a Itália seria imbatível. Ninguém grita mais alto que italiano. Afinal de contas, eles cantam ópera.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

CLARICE LISPECTOR E O FUTEBOL: A HORA DA ESTRELA SOLITÁRIA (1)

Em 2006, escrevi este comentário-crônica para o jornal O Povo. Como as referências datavam muito o texto, mas o tema ainda me interessa, fui modificando. E agora coloco a nova versão aos poucos.



"O futebol tem uma beleza própria de movimentos que não precisa de comparações". Esta frase poderia tranqüilamente vir de um abalizado admirador do futebol ou de qualquer torcedor minimamente atento à dimensão de arte que se chegou a atribuir a um bom jogo com bons jogadores, não viesse ela de Clarice Lispector. Aliás, a escritora declarava repetidamente ser uma pessoa comum, como qualquer outra, uma brasileira simples, mesmo tendo nascido na distante Ucrânia. E, como a brasileira que afirmava ser e de fato o foi, ela não ficou incólume às seduções deste esporte capaz de mobilizar uma nação, talvez muito mais do que outras manifestações de massas, por mais que isso desagrade a muitos. Sobretudo em tempo de Campeonato Brasileiro ou de Copa do Mundo. Imagine Clarice, diante da TV, assistindo aos jogos do Brasil na última Copa, na Alemanha, ou das Copas que ainda estão por vir...

Para alguns, isso é algo difícil de imaginar. É que a representação da autora em circulação no imaginário de uma parcela considerável de leitores, admiradores e devoradores da prosa clariceana é freqüentemente associada a outras questões: a existência e suas contingências, a condição humana sempre às voltas com seus mistérios, a condição feminina e seus desvãos, a indefectível angústia, a morte, a solidão, os limites da linguagem, entre outros temas considerados profundos e complexos. Tal associação cristalizou uma imagem bastante específica da escritora, como se ela não tivesse tido a possibilidade de uma existência comum, cotidiana. Daí talvez ser difícil vincular Clarice ao futebol, pelo menos para alguns, o que, muito longe de considerarmos algo ruim, nos serve de mote para pensar na possibilidade do inesperado ou na distante experiência do outro.

João Cabral de Melo Neto, por exemplo, escreveu um poema sobre a amiga ("Contam de Clarice Lispector"):


Um dia, Clarice Lispector

intercambiava com amigos

dez mil anedotas de morte,

e do que tem de sério e circo.


Nisso, chegam outros amigos,

vindos do último futebol,

comentando o jogo, recontando-o,

refazendo-o, de gol a gol.


Quando o futebol esmorece,

abre a boca um silêncio enorme

e ouve-se a voz de Clarice:

Vamos voltar a falar na morte?


O poema cabralino reafirma aquela imagem de Clarice interessada em discutir e rir da “Indesejada das gentes”, como disse um dia Manuel Bandeira; e o futebol entraria só de soslaio, como uma narrativa que finda para dar lugar à busca dos sentidos da morte.

Porém, há elementos pouco explorados da biografia de Clarice que a aproximam, como a muitos brasileiros, do tema do futebol, como algo que se encrava no cotidiano.

Mas é vasculhando os escritos dela que se podem encontrar indícios da possibilidade à qual me referi antes. E explico melhor aos poucos.




segunda-feira, 18 de maio de 2009

ENTRE A BOCA DA NOITE E A MADRUGADA:


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A insônia criativa e o sonho com o dia seguinte

Neste ano de 2009, se vivo estivesse, Milton Dias faria 90 anos, no dia 29 de abril. Eminentemente cronista, este cearense de Ipu tem obra vasta, sendo que apenas uma pequena parte encontra-se publicada em livro, se pensarmos que somente no jornal O Povo manteve coluna fixa durante 25 anos ininterruptos, sem falar nos textos que publicou em outros veículos. Mesmo assim, ao folhearmos Entre a boca da noite e a madrugada, temos um registro bastante abrangente e significativo dos temas de afeição do escritor, seu universo pessoal e suas técnicas de conquista de leitores.
O livro está dividido em cinco partes, cada qual com critérios temáticos que abrangem seus personagens (reais e inventados; mulheres, homens e bichos), a preocupação metafísica com o tempo (o passado, o presente, o cotidiano) e as representações afetivas do espaço (o sertão, a cidade, o mar e o lugar imaterial das angústias do ser humano). É com estes temas que Milton Dias faz um passeio lírico com sua insônia a tiracolo, elemento algumas vezes sugerido ao longo da obra, como um artifício provocador do trabalho de “cronicar”.
Neste trabalho, ele constrói um ambiente de comunicação de um “eu cronístico” (se é que isso pode existir, já que nem sempre se pode falar estritamente de narrador para certas crônicas) em reiterado diálogo consigo mesmo e um leitor imaterial e em constante reelaboração de um provável “eu lírico” escamoteado pela prosa saborosa, escrita ao som dos misteriosos ruídos da noite e da madrugada. É essa prosa insone e essa poesia sem versos que fazem de Milton Dias um representante das angústias do homem do século XX, angústias essas que podem ser as nossas, cidadãos do terceiro milênio: a passagem do tempo que modifica todos os semblantes (“Nevinha”, “Matoso – pai e filho”), as lembranças guardadas em tom nostálgico, de quem quer que elas voltem a ser presentes (“Acácias, gatos e pássaros”, “Madrugada II”), a dor e a incompreensão diante da morte (“Alba”, “O menino Valdir”, “Réquiem”) ou a solidariedade diante dos desvalidos, aqueles a quem a vida não ofereceu muita coisa (“Touro, na 0084”, “Jurema”, “Das Dores”, cujo nome é tão significativo, “Salmo do homem só”).
Vendo dessa forma, até parece que a crônica de Milton Dias é só tristeza. Paradoxalmente, e aí reside sua arte, ele procurava o tom mais poético e mais humano para falar de assuntos difíceis; e nesse propósito o escritor não dispensava o humor, tão necessário a quem pretende enfrentar as agruras de uma realidade nem sempre aprazível, ou um humor simplesmente natural em determinados eventos do cotidiano em que todo cronista, se for bom, pretende ancorar suas ideias. Em alguns textos, o humor até faz parelha com o lirismo, como é o caso de “Guardai-vos da Rainha”, que, a pretexto de falar dos encantos de determinadas regiões de Minas Gerais, oferece uma inusitada recomendação ao leitor, caso este viaje àquele estado: não faça passeio de charrete conduzido por uma burra chamada Rainha. Já em “Os golinhas”, depois de expor afetivamente os benefícios dos passarinhos na vida de uma pessoa, faz apelo hiperbólico aos leitores, no caso de virem algum “seqüestrador de golinhas”, que denunciem, pois ele havia sido “subtraído” de um de seus golinhas, “com gaiola e tudo”, por “bandidos, corja, malta de salteadores e de malfeitores!” Já a série “Ana Gerviz I, II, III”, que aparentemente se baseia em figura real, conhecida do cronista, apresenta uma dessas personagens sertanejas, religiosíssima, solterona convicta, que tinha o talento de imitar quem quer que fosse e de contar as histórias improváveis que parecem ser crias de um sertão da memória mítica de um povo sofrido, porém alegre e espirituoso.
Como se não bastasse, Milton Dias ainda pontua em várias crônicas quase como um humilde filósofo da pequenez dos fatos cotidianos, a meditar sobre as coisas preciosas e, ao mesmo tempo, aparentemente desimportantes: os gestos triviais (inclusive os de boa educação, esquecidos na vivência da urbanidade que só enxerga os símbolos de status e poderio econômico a desprezar quem não os têm); o cheiro de café das convidativas casas nas poucas ruas ainda bucólicas da cidade de Fortaleza, prometendo uma hospitalidade que já se tornara lenda no tempo do cronista; a amizade verdadeira desprovida dos interesses arrivistas do alpinismo social medíocre e vazio; o amor verdadeiro a superar todos os tipos de barreiras e de convenções; os sonhos simples das promessas de um futuro melhor que poderia vir tão somente em forma de uma crônica reconfortante para o dia seguinte; ou apenas a paisagem na janela que já não temos tempo de admirar...
Tudo foi motivo de indagação e encantamento nas linhas deixadas pelo cronista que já se foi, mas deixou em suas páginas (& folhas) uma filosofia de vida que parece querer nos indicar que qualquer pequena coisa longinquamente verdadeira que deixamos passar por nós, sem nos darmos conta, deve ser resgatada. Porque, como diria Milton Dias, a vida é breve e, até segunda ordem, só se vive uma vez.

Miguel Leocádio Araújo