segunda-feira, 18 de maio de 2009

ENTRE A BOCA DA NOITE E A MADRUGADA:


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A insônia criativa e o sonho com o dia seguinte

Neste ano de 2009, se vivo estivesse, Milton Dias faria 90 anos, no dia 29 de abril. Eminentemente cronista, este cearense de Ipu tem obra vasta, sendo que apenas uma pequena parte encontra-se publicada em livro, se pensarmos que somente no jornal O Povo manteve coluna fixa durante 25 anos ininterruptos, sem falar nos textos que publicou em outros veículos. Mesmo assim, ao folhearmos Entre a boca da noite e a madrugada, temos um registro bastante abrangente e significativo dos temas de afeição do escritor, seu universo pessoal e suas técnicas de conquista de leitores.
O livro está dividido em cinco partes, cada qual com critérios temáticos que abrangem seus personagens (reais e inventados; mulheres, homens e bichos), a preocupação metafísica com o tempo (o passado, o presente, o cotidiano) e as representações afetivas do espaço (o sertão, a cidade, o mar e o lugar imaterial das angústias do ser humano). É com estes temas que Milton Dias faz um passeio lírico com sua insônia a tiracolo, elemento algumas vezes sugerido ao longo da obra, como um artifício provocador do trabalho de “cronicar”.
Neste trabalho, ele constrói um ambiente de comunicação de um “eu cronístico” (se é que isso pode existir, já que nem sempre se pode falar estritamente de narrador para certas crônicas) em reiterado diálogo consigo mesmo e um leitor imaterial e em constante reelaboração de um provável “eu lírico” escamoteado pela prosa saborosa, escrita ao som dos misteriosos ruídos da noite e da madrugada. É essa prosa insone e essa poesia sem versos que fazem de Milton Dias um representante das angústias do homem do século XX, angústias essas que podem ser as nossas, cidadãos do terceiro milênio: a passagem do tempo que modifica todos os semblantes (“Nevinha”, “Matoso – pai e filho”), as lembranças guardadas em tom nostálgico, de quem quer que elas voltem a ser presentes (“Acácias, gatos e pássaros”, “Madrugada II”), a dor e a incompreensão diante da morte (“Alba”, “O menino Valdir”, “Réquiem”) ou a solidariedade diante dos desvalidos, aqueles a quem a vida não ofereceu muita coisa (“Touro, na 0084”, “Jurema”, “Das Dores”, cujo nome é tão significativo, “Salmo do homem só”).
Vendo dessa forma, até parece que a crônica de Milton Dias é só tristeza. Paradoxalmente, e aí reside sua arte, ele procurava o tom mais poético e mais humano para falar de assuntos difíceis; e nesse propósito o escritor não dispensava o humor, tão necessário a quem pretende enfrentar as agruras de uma realidade nem sempre aprazível, ou um humor simplesmente natural em determinados eventos do cotidiano em que todo cronista, se for bom, pretende ancorar suas ideias. Em alguns textos, o humor até faz parelha com o lirismo, como é o caso de “Guardai-vos da Rainha”, que, a pretexto de falar dos encantos de determinadas regiões de Minas Gerais, oferece uma inusitada recomendação ao leitor, caso este viaje àquele estado: não faça passeio de charrete conduzido por uma burra chamada Rainha. Já em “Os golinhas”, depois de expor afetivamente os benefícios dos passarinhos na vida de uma pessoa, faz apelo hiperbólico aos leitores, no caso de virem algum “seqüestrador de golinhas”, que denunciem, pois ele havia sido “subtraído” de um de seus golinhas, “com gaiola e tudo”, por “bandidos, corja, malta de salteadores e de malfeitores!” Já a série “Ana Gerviz I, II, III”, que aparentemente se baseia em figura real, conhecida do cronista, apresenta uma dessas personagens sertanejas, religiosíssima, solterona convicta, que tinha o talento de imitar quem quer que fosse e de contar as histórias improváveis que parecem ser crias de um sertão da memória mítica de um povo sofrido, porém alegre e espirituoso.
Como se não bastasse, Milton Dias ainda pontua em várias crônicas quase como um humilde filósofo da pequenez dos fatos cotidianos, a meditar sobre as coisas preciosas e, ao mesmo tempo, aparentemente desimportantes: os gestos triviais (inclusive os de boa educação, esquecidos na vivência da urbanidade que só enxerga os símbolos de status e poderio econômico a desprezar quem não os têm); o cheiro de café das convidativas casas nas poucas ruas ainda bucólicas da cidade de Fortaleza, prometendo uma hospitalidade que já se tornara lenda no tempo do cronista; a amizade verdadeira desprovida dos interesses arrivistas do alpinismo social medíocre e vazio; o amor verdadeiro a superar todos os tipos de barreiras e de convenções; os sonhos simples das promessas de um futuro melhor que poderia vir tão somente em forma de uma crônica reconfortante para o dia seguinte; ou apenas a paisagem na janela que já não temos tempo de admirar...
Tudo foi motivo de indagação e encantamento nas linhas deixadas pelo cronista que já se foi, mas deixou em suas páginas (& folhas) uma filosofia de vida que parece querer nos indicar que qualquer pequena coisa longinquamente verdadeira que deixamos passar por nós, sem nos darmos conta, deve ser resgatada. Porque, como diria Milton Dias, a vida é breve e, até segunda ordem, só se vive uma vez.

Miguel Leocádio Araújo

5 comentários:

  1. oi,miguel
    como foi saboroso ler seu texto e claro descobrir através dele mais sobre a nossa cultura literária.
    e saudades das nossas conversas...
    parabéns e aguardo o próximo.
    deoclys

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  2. Deoclys, que bom que gostou. Melhor ainda a retomada de nossas conversas. Obrigado. abs

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  3. Um bom texto, pra mim, diz tudo aquilo que você não sabe, ou se sabe, descobre que estava errado. Milton Dias é foda! Rodrigo C. Vargas

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  4. Rodrigo, Milton Dias realmente é foda! E eu só descobri isso tardiamente, porque o primeiro livro dele que me propus a ler foi Relembranças, que muito autobiográfico, e não me interessou tanto. Mas depois fui comprando outros livros dele em sebos da cidade, muito por conta da adoção do ENTRE A BOCA DA NOITE E A MADRUGADA para o vestibular da UFC. E daí me tornei fã.

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  5. Miguel, estava lendo seu texto, queria saber se você sabe algum site que tenha o download do livro. obrigada,Cristiane.

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