sexta-feira, 29 de maio de 2009

CLARICE LISPECTOR E O FUTEBOL: A HORA DA ESTRELA SOLITÁRIA (1)

Em 2006, escrevi este comentário-crônica para o jornal O Povo. Como as referências datavam muito o texto, mas o tema ainda me interessa, fui modificando. E agora coloco a nova versão aos poucos.



"O futebol tem uma beleza própria de movimentos que não precisa de comparações". Esta frase poderia tranqüilamente vir de um abalizado admirador do futebol ou de qualquer torcedor minimamente atento à dimensão de arte que se chegou a atribuir a um bom jogo com bons jogadores, não viesse ela de Clarice Lispector. Aliás, a escritora declarava repetidamente ser uma pessoa comum, como qualquer outra, uma brasileira simples, mesmo tendo nascido na distante Ucrânia. E, como a brasileira que afirmava ser e de fato o foi, ela não ficou incólume às seduções deste esporte capaz de mobilizar uma nação, talvez muito mais do que outras manifestações de massas, por mais que isso desagrade a muitos. Sobretudo em tempo de Campeonato Brasileiro ou de Copa do Mundo. Imagine Clarice, diante da TV, assistindo aos jogos do Brasil na última Copa, na Alemanha, ou das Copas que ainda estão por vir...

Para alguns, isso é algo difícil de imaginar. É que a representação da autora em circulação no imaginário de uma parcela considerável de leitores, admiradores e devoradores da prosa clariceana é freqüentemente associada a outras questões: a existência e suas contingências, a condição humana sempre às voltas com seus mistérios, a condição feminina e seus desvãos, a indefectível angústia, a morte, a solidão, os limites da linguagem, entre outros temas considerados profundos e complexos. Tal associação cristalizou uma imagem bastante específica da escritora, como se ela não tivesse tido a possibilidade de uma existência comum, cotidiana. Daí talvez ser difícil vincular Clarice ao futebol, pelo menos para alguns, o que, muito longe de considerarmos algo ruim, nos serve de mote para pensar na possibilidade do inesperado ou na distante experiência do outro.

João Cabral de Melo Neto, por exemplo, escreveu um poema sobre a amiga ("Contam de Clarice Lispector"):


Um dia, Clarice Lispector

intercambiava com amigos

dez mil anedotas de morte,

e do que tem de sério e circo.


Nisso, chegam outros amigos,

vindos do último futebol,

comentando o jogo, recontando-o,

refazendo-o, de gol a gol.


Quando o futebol esmorece,

abre a boca um silêncio enorme

e ouve-se a voz de Clarice:

Vamos voltar a falar na morte?


O poema cabralino reafirma aquela imagem de Clarice interessada em discutir e rir da “Indesejada das gentes”, como disse um dia Manuel Bandeira; e o futebol entraria só de soslaio, como uma narrativa que finda para dar lugar à busca dos sentidos da morte.

Porém, há elementos pouco explorados da biografia de Clarice que a aproximam, como a muitos brasileiros, do tema do futebol, como algo que se encrava no cotidiano.

Mas é vasculhando os escritos dela que se podem encontrar indícios da possibilidade à qual me referi antes. E explico melhor aos poucos.




2 comentários:

  1. Sabemos que o interessante da vida é
    sobre(sair) da superfície, elevando-se e/ou sobrepondo-se à condição de sermos mais do que aparentamos ser, nesse mundinho de vaidades e vitrines. Os devoradores da prosa clariciana sabemos muito bem disso. E mergulhamos deliciosamente nessa complexidade. Mas o texto de Miguel nos mostra que Clarice era mesmo tão comum, como qualquer expectador da vida diária. Ela também foi simples, porque assim lhe pareceu a vida. Porque a vida é assim: clara, desnudada, simples.
    Um excelente texto sobre essa Clarice que pouco conhecemos!
    (meire viana)

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  2. Meire, obrigado pelo comentário. Aguarde a continuação do texto.

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