domingo, 17 de agosto de 2014

A DONZELA DESPREZADA, DE EDUARDO CAMPOS



“A donzela desprezada” faz parte da “trilogia de dramas urbanos”, como denominou Marcelo Costa. A peça foi provavelmente escrita em 1964 pelo cearense Eduardo Campos e encenada pela primeira vez em 1995, juntando-se às conhecidas “O Morro do Ouro” e “A Rosa do Lagamar”, todas ambientadas em Fortaleza.
Quando conheci o texto, por meio do livro Três peças escolhidas (Fortaleza: Edições UFC, 2008), achei o título estranho, meio fora de tempo, quase como se colocasse o dramaturgo cearense entre aqueles de uma longínqua tradição oitocentista. É que o tal título tem um sabor de antiguidade, pelo fato de trazer o vocábulo “donzela”, elemento que nomeia o texto e impulsiona a ação. Um outro fator que lhe confere um perfume de passado é o fato de tratar de uma preocupação bastante comum nas narrativas de outros tempos, em que o temor de permanecer solteira (ou, pior ainda, o pavor de ser desprezada por aquele a quem ama) causava às personagens femininas um sentimento de derrota, tal como acontece à Florzinha (do romance O sertanejo, de José de Alencar) ou à também Florzinha (personagem de Aves de arribação, de Antônio Sales).
Por outro lado, há nesse título um certo tom anedótico. Inicialmente o próprio Eduardo Campos desprezou sua “filha”, guardando a peça nas suas gavetas por mais de 30 anos; ele que estava acostumado a acumular o sucesso de crítica e público com a densidade de alguns de seus dramas. De fato, dos trabalhos que compõem Três peças escolhidas, “A donzela desprezada” é aquele que tem mais cenas que provocam o riso, não deixando, com isso, de ser um drama.
A personagem Amelinha é a rainha de um dos partidos de uma quermesse e vivia às voltas com a cartomante Lolita, para saber se seu amor por Edmundo vingaria. Na dúvida, inicia-se uma sucessão de peripécias encabeçadas por policiais corruptos e jornalistas em busca da notícia escabrosa de última hora. A dúvida, no final, se revela como um erro de interpretação de Amelinha, a moça ingênua que se deixa levar pela palavra e pelo conselho de qualquer pessoa desconhecedora da verdade de sua condição, quer seja sua mãe (Valdelice), o Agente da polícia, o Delegado, o jornalista (Benedito) ou qualquer outro que julgue contribuir para minimizar os males imaginariamente forjados, para obrigar Edmundo a casar com a donzela, que, por sinal, dizia-se não mais tão donzela assim...
Nesse sentido, o tom de crítica alcança as raias da ferocidade, pois ninguém escapa de ser oportunista e mentiroso. A imprensa é representada como uma ave de rapina, que perde o interesse pela presa tão logo tenha arrancado o que interessa para uma reportagem bombástica que acelera a venda de jornais. A polícia é representada como instituição que, em vez de colaborar na solução de problemas reais, incita à mentira e à farsa, desde que tenha sua imagem pública bem cotada naquela imprensa. O oportunismo do querer aparecer a qualquer custo, mesmo que para isso tenha que se manchar a própria reputação, comparece nas figuras de Valdelice e Amelinha de forma ambígua e oscilante. Como drama colateral, surge ainda Lolita, uma cartomante viciada em remédios que acaba falecendo, provocando a mudança de interesses da parte de jornalista e policiais para o fato “quente” do dia. E o suposto drama da donzela desprezada se apaga para dar lugar a outro.
Esse enredo é mostrado com uma alternância de cenas mais sérias e outras quase burlescas, com diálogos que mostram a podridão do ser humano ao transformar verdade em ficção e vice-versa; nas palavras de Marcelo Costa, trata-se do texto de Eduardo Campos mais distanciado do real, provavelmente pelo fato de o dramaturgo carregar nas tintas provocativas e críticas do comportamento humano.
Nunca vi uma encenação desse texto, fico somente imaginando como seria. Alguns elementos do texto ainda me soam bem atuais...

4 comentários:

  1. Vi o título do seu post no meu painel do blogger e logo fiquei curiosa - confesso, nunca li nada (nem tinha ouvido falar :/ ) do escritor cearense Eduardo Campos (na verdade, com esse nome só ''conhecia'' o tal político falecido haa), gostei do enredo, principalmente por mesclar temáticas tanto ''passadas'' -da sociedade daquele tempo- com temas que refletem na sociedade atual (como os policiais corruptos e jornalistas... por ex.), de uma forma ou de outra.

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    1. Pois é, Lizandra. Conheço o dramaturgo há bem mais tempo do que o político falecido. E, por conhecer relativamente bem o dramaturgo (que cheguei a entrevistar), tornei-me leitor de seus outros textos: contos, romances, ensaios... Vale muito a pena conhecer. Há outros textos dele para teatro que são muito bons.

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  2. Olá, Miguel. Sua análise dessa peça de Eduardo Campos traz, além do que nos apresentou por sua escrita, alguns implícitos interessantes, como o fato de a imprensa ter tendência natural àquilo que provoca, não poucas vezes, a comoção das pessoas: a miséria humana, o sensacionalismo.

    Bem antes disso, sua apresentação da maneira como o dramaturgo revela a vida social por meio do que envolve a personagem principal deleita o leitor, por ver no crítico visão plena para a exposição do drama do autor.

    Um grande abraço.

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    1. Olá, Sérgio. Obrigado pelo seu comentário tão preciso quanto arguto. Realmente, tem me impressionado nos últimos tempos a maneira vil como a imprensa trata os fatos não só da nossa vida cotidiana, mas também os fatos da trama política recente. No entanto, o texto do dramaturgo cearense me fez lembrar que isso não é de hoje nem de ontem; vem de muito longe e foi representado em "A donzela desprezada" de forma especialmente evidente. Grande abraço.

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