segunda-feira, 14 de julho de 2014

“CAIO E LÉO”, EXPERIÊNCIA DE ESPECTADOR (Parte II)



O trabalho com a luz é elemento que colabora para a construção da narrativa de “Caio e Léo”. Um dos momentos mais climáticos da peça ocorre pela formação de sombras na parede de fundo do palco, enquanto no centro do palco se dá uma cena de intensa intimidade e tensão erótica entre os personagens: o público vê projetados os corpos dos atores da cintura para baixo, numa sugestão de erotismo bastante plástica. Nesse sentido, é possível que a direção de Yuri Yamamoto tenha intencionalmente dialogado com as artes visuais – não se deve esquecer que um dos personagens é fotógrafo, ou seja, já há uma abertura no próprio texto de Rafael Martins a esse diálogo. A própria luz do espetáculo remete ao universo do fotógrafo Léo; as várias direções e intervalos em que a iluminação ressalta ou se esmaece parece querer nos lembrar flashes de uma câmera selecionando o que deve ser captado pelo olhar.




Outro momento plástico é quando Caio, empunhando um foco de luz, movimenta-se com um boneco, ele mesmo, afinal – quase numa performance solo de Ari Areia –, também com um trabalho de iluminação muito sugestivo (porque poético): a ideia de pequenez e de solidão confirma o modo como a trajetória de Caio começa: em solidão e silêncio diante da luz que o atravessa. Isso se assemelha ao trecho da distribuição de carros nos estrados que servem como palco, à maneira de um artista visual começando a montar uma de suas instalações: na cena, a ideia de perder-se e perder um objeto é mote para se notar que Léo é o contraponto de Caio, mas já relativizando-se esse contraponto. O fotógrafo leva a vida aos saltos, enfrentando os riscos, lançando-se ao desconhecido; no entanto, ele também procura a estabilidade do amor. Já o especialista em planejamento leva uma vida onde só deve haver espaço para a certeza e a previsibilidade; no entanto, ensaia outra posição para si e já admite correr riscos. A influência do amor e do desejo opera mudanças no comportamento dos personagens.
Cada elemento da montagem de “Caio e Léo” está carregado de sentido. Um exemplo disso é o fato de a ação transcorrer predominantemente em cima de estrados que representam um píer à beira-mar, mas também outros espaços. A simetria desse objeto de cena remete ao cartesianismo de Caio, aos seus caminhos bem traçados, aparentemente sem espaço para quebras ou desvios; enquanto o jogo de iluminação do espetáculo remete ao fotógrafo, como já mencionado. Inclusive, a inversão da direção da luz (ora de cima para baixo, ora de baixo para cima) é algo que me pareceu dividir as cenas, mas também as experiências dos dois rapazes. Parece que a luz que vem de debaixo dos estrados – nos intervalos entre as cenas – tenta sublinhar a reorganização da vida e os vazios entre as falas, que por sua vez apontam para a necessidade de se preencher esses vazios com as falas de um amor em construção, desenvolvendo uma paixão cada vez mais difícil.
Por outro lado, os sons que permeiam a cena remetem também ao sonho de Léo, no que há de captação do vento, já que o barulho do mar pontua em vários momentos. Ao mesmo tempo, a trilha sonora – por favor, produção, divulgue as músicas que estão na peça! – compõe um clima de delicadeza associada à possibilidade da realização do amor, mas também de melancolia, o que cria, para o espectador, no meio do espetáculo, uma dúvida se o amor se efetiva ou não.



Nas duas apresentações que vi, os efeitos são um pouco diferentes. No Teatro do Dragão do Mar, tem-se a impressão de maior efeito visual, em alguns momentos, pela própria estrutura do palco, mais amplo. Já no Teatro Universitário, tive a impressão de maior proximidade com o público, algo condizente com o intimismo do próprio texto. Nas duas apresentações, os atores cumpriram com sensibilidade os seus papéis, nas modulações de voz, na contenção dos gestos e na expressividade própria de quem vive outras vidas. Fiquei pensando: atores tão jovens e já tão expressivos... Os dois em cena me lembraram uma música do Suede (“The wild ones”, não sei por quê. Depois de ambas as apresentações, fui ouvir essa música pensando na peça...). Incluo autor, diretor e artistas da técnica do Outro Grupo de Teatro entre esses “wild ones” que fazem sonhar. “Tem coisas que, mesmo que a gente não veja, elas existem”, diz Léo. A beleza, a gente vê e ouve. Muito nitidamente.

“Caio e Léo”, no Teatro Universitário, Avenida da Universidade, 2210, Benfica, Fortaleza, durante todo o mês de julho de 2014, aos sábados e domingos, às 19 horas. Texto de Rafael Martins. Direção de Yuri Yamamoto. Com Ari Areia e Tavares Neto.

Miguel Leocádio Araújo

P.S.: Não sou crítico de teatro, nem jornalista. Só escrevi sobre uma peça de José de Alencar (“O Rio de Janeiro – Verso e reverso”), para uma publicação acadêmica. Mas gosto de ler teatro e ver peças por aí. Apenas me arrisquei a escrever sobre um espetáculo que me fez ficar pensando na vida... 




11 comentários:

  1. Excelente... As músicas, a iluminação, o cenário, a forma com que foi conduzido...contribuíram de forma expressiva para as falas, riquíssimas, ficarem ainda mais reflexivas, tocantes... Suas percepções, paralelos também são muito enriquecedores....amei assistir ao espetáculo e ler seus textos depois...parabéns a todos!

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    1. Obrigado, Jamili, por comentar. Que maravilha que você viu a peça. Esse espetáculo é bacana demais, cheio de nuances e entrelinhas, o que torna a experiência de assisti-lo ainda mais instigante. Pena que eu não fui no mesmo dia que você para comentarmos a montagem depois...

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    2. Podemos repetir próximo fds!

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    3. Podemos sim, inclusive tem alguns alunos da FECLESC interessados em vir a Fortaleza para ver o espetáculo.

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  2. Um olhar sensível sobre nosso trabalho, lindo o texto, adorei tuas impressões sobre Caio e Léo. Muito obrigado.Abraço!

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    1. Este comentário foi removido pelo autor.

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    2. Yuri Yamamoto, fico honrado e feliz com seu comentário. Acompanho seu trabalho como diretor há algum tempo. Seu trabalho como diretor é uma das coisas que faz essa cidade pulsar. Obrigado. Abraço.

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  3. Ah, quanto a trilha, são músicas da banda MOGWAI.
    Segue link da faixa final:
    http://youtu.be/luM6oeCM7Yw

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  4. Miguel, sou o autor da peça. Não te conheço, mas fiquei impressionado com a precisão do seu olhar, com a sintonia com a obra, com a capacidade de perceber as vontades dos criadores... E também com a qualidade de sua escrita. Muito obrigado! É raro, inclusive entre críticos, alguém que faça isso com a profundidade e competência que você fez. Parabéns. Ficaria muito feliz se você assistisse a outro espetáculo de texto meu que está em cartaz. Chama-se "A mão na face". Abração.

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    1. Rafael Martins, me sinto honrado demais com seu comentário e pelas palavras encorajadoras. Gosto demais de teatro, mas a falta de metodologia (minha) acaba impedindo que eu escreva mais sobre o que vejo. Vontade dá, porém o pensamento é volátil e a palavra necessita de disciplina para se manifestar. Pelo menos no meu caso. Eu já vi "A mão na face" uma vez no Teatro do SESC (Iracema). Quero ver outra vez nessa nova temporada. Escrevi notas sobre o espetáculo, mas não cheguei a estruturar um texto a respeito. Foi outro espetáculo que me impressionou. Abração.

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