sábado, 3 de março de 2012

MILTON DIAS E A CRÔNICA COMO ESPAÇO PARA A MEMÓRIA



Que a crônica é um gênero de difícil caracterização, disso todos sabem. Os livros didáticos e manuais de literatura encontram sempre as mesmas dificuldades para descrever este que parece ser o mais fugidio dos gêneros literários modernos. Nem por isso, a crônica deixa de ocupar o espaço dos jornais, das revistas e dos modernosos blogs, quer sejam eles jornalísticos ou não. Mais ainda: a crônica também ocupa as páginas dos livros (estes objetos de materialidade muito mais duradoura do que poderiam supor os profetas do e-book), quando seus autores resolvem resgatá-las do esquecimento a que se destinam os veículos periódicos, sempre superados com a próxima edição. Foi nessa perspectiva de resgate que Milton Dias trabalhou, ao organizar suas coletâneas de crônicas. Aliás, é bom ressaltar que a palavra “resgate” passa por um mau momento, em que muitos preferem substituí-la por outros termos: “requalificação”, “ressignificação” ou qualquer outra que navegue na pasmaceira do discurso politicamente correto. No entanto, essa palavra, “resgate”, aplica-se bem à ideia que pretendemos desenvolver neste texto, que por sinal poderia intitular-se “a crônica como resgate da memória do cronista”.
Sim, resgate da memória parece ter sido uma das tarefas no árduo trabalho de cronista encetado por Milton Dias em quase 30 anos de produção. Muitas dos textos presentes em Entre a boca da noite e a madrugada, por exemplo, foram elaboradas exatamente para fixar no branco do papel as tintas às vezes nítidas às vezes esmaecidas das lembranças guardadas na misteriosa caixa preta que parece ser a memória individual. Como se não bastasse a revelação de si, trazida pela evocação memorialística, ainda serve de sobremesa o registro da experiência coletiva, aquela parte de seus textos que nos permite identificar as vivências que ultrapassaram o individual, servindo para enquadrar a práticas sociais de um grupo, de uma coletividade, de um povo. Daí os estudiosos atribuírem-lhe o memorialismo como característica, pois este não se configura apenas como resultado de uma história individual, mas também como apanhado de palavras, gestos, ideias, costumes, fatos compartilhados por muitos.
Às vezes, este memorialismo realizado por Milton Dias encontra no pequeno gesto cotidiano uma expressão poética, materializada em relatos sobre o quase nada: um passarinho (e outros) com as alegrias proporcionadas ao dono (“Os golinhas”), uma morosa tarde de domingo (ou de qualquer dia) usada como mote para lembrar de outros tempos e de outros lugares, com seus apelos sensoriais (“Domingo à tarde”, “Domingo à tarde, outrora” e “Tarde antiga”), as chuvas do “inverno” a evocar a alegria de um sertão mediado pelo véu de uma fartura em tons de verde (“Vou-me embora pro sertão”). Neste tipo de lembrança, tudo vale para tornar o texto mais saboroso: um cheiro de café, o pio de um pássaro de estimação, o gado se lamentando de tanta preguiça, o som de um instrumento musical, o frio da madrugada, os filmes e os cinemas decididos no sabor do improviso. E mesmo as pessoas.
Mas as pessoas representam capítulo à parte neste memorialismo. Às vezes, são figuras que o cronista faz questão de lembrar pelo que elas têm de notável, levando-as a adquirirem algum renome na cidade (Alba Frota, em “Alba”, ou Antônio Girão Barroso, em “Não é doce morrer no mar”). Por outro lado, o indivíduo anônimo, mas igualmente notável pela figura humana que representava, também comparece, sem sabermos ao certo se estes “personagens” realmente fizeram parte do convívio afetivo e familiar do cronista: uma vendedora de flores, dublê de poetisa e namoradeira de plantão (“Jurema”), a figura meio cômica de uma velha tagarela que contava histórias mirabolantes (“Ana Gerviz”), uma mulher sedutora, interesseira e conspirativa que iludia os rapazes dos quais se aproximava, arrasando corações (“Nevinha”), o próprio avô de Milton Dias, a respeito do qual ele escreve um texto que é uma verdadeira biografia afetiva, sem a precisão das datas fechadas (“O avô”), entre muitas outras pessoas.
Nessas crônicas memorialísticas, o escritor registra um outro tempo vivido, com tonalidades nostálgicas de épocas em que, no espaço urbano, até para desobedecer o pai ou para desrespeitar uma norma estabelecida era preciso agir com uma certa elegância ou com uma certa fineza no trato. E a fixação dessa nostalgia do passado, embora irrite alguns ansiosos pelo atropelo do espaço alheio, é que dá força de permanência da memória aos textos de Milton Dias. É assim que o escritor delimita o seu espaço, em seu texto, como lugar para a sobrevivência da cordialidade, algo que parece ter definitivamente ter ficado no passado. Pelo menos para alguns.

[Escrevi este texto para um jornal de circulação escolar, em 2009, quando o livro Entre a boca da noite e a madrugada estava na lista das leituras sugeridas para o vestibular da UFC. Agora modificado, coloco-o aqui, por conta da admiração que tenho pelo cronista Milton Dias e pela leveza de suas crônicas.]

Miguel Leocádio Araújo

2 comentários:

  1. Muito gosto do gênero crônica e foquei feliz de conhecer este, de Milton, qie ainda não conhecia , por seu belo texto.

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    1. Caubi, fiquei feliz com seu encontro com Milton Dias. Um dos livros cearenses de que mais gosto é As Cunhãs, e é dele.

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