sexta-feira, 10 de julho de 2009

FRAN MARTINS: MANIPUEIRA (CONTOS DO JUAZEIRO DO PADRE CÍCERO)


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Muitas pessoas podem até nunca ter ouvido falar em Fran Martins (1913-1996) (e isso não quer dizer muita coisa – outro dia uma estudante universitária de um curso da área de ciências humanas me perguntou quem havia sido Cecília Meireles...). Ainda assim, muitas pessoas da área jurídica sabem quem foi ele pelos livros jurídicos que escreveu. E ainda há as pessoas que lidam com literatura produzida no Ceará, que têm alguma idéia do que ele fez.
Então, quando se diz alguma coisa sobre Fran Martins e sua literatura, é inevitável mencionar A rua e o mundo (1962) ou Dois de Ouros (1966), duas de suas conhecidas narrativas longas, através das quais o escritor representou a cidade do Crato, em seu cotidiano e seus dramas. Aliás, ao falar da ficção de Fran Martins, a menção à sua obra romanesca é algo natural, já que ele publicou mais romances que livros de contos.
Mas curiosamente o escritor iniciou e findou sua carreira como contista, com Manipueira (1934) e A Análise (1989), respectivamente. Além destes dois volumes de contos, ainda publicou Noite Feliz (1946), Mar Oceano (1948) e O Amigo de Infância (1960). Com cinco livros de contos, Fran confirma o que já constitui seu foco de interesse no romance: a representação da vida do interior cearense, sobretudo o Cariri, como uma espécie de microcosmo de uma realidade com aspectos comuns ao Nordeste como um todo.
Somente em A análise, temática e linguagem não se voltam para aspectos regionais, como observa Rachel de Queiroz, no texto de apresentação do livro, complementando que Fran teria atingido seu primor na construção do texto curto. Mas as suas outras coletâneas de contos abordam algum aspecto da mentalidade e da cultura nordestina, representando-as à maneira da principal tendência da ficção praticada por sua geração, conhecida como a do “Romance de 30”, da qual fez parte a própria Rachel, além de Jorge Amado, José Lins do Rêgo, Graciliano Ramos, entre outros.
Estes autores preocuparam-se principalmente com certos problemas sócio-econômicos da região (seca, decadência da cultura açucareira, coronelismo, cangaço, fanatismo religioso, etc.) que, num primeiro momento, acreditavam ser os de maior alcance cultural; daí a necessidade de praticar uma narrativa mais aparentada com o Realismo-Naturalismo, atualizando-o criticamente, ancorando-se num compromisso de aderir à linguagem do povo.
O primeiro livro de Fran Martins afirma uma posição ligada à escrita de “invenção do Nordeste”, para usar uma expressão do historiador Durval Muniz de Albuquerque Jr. (A invenção do Nordeste e outras artes, Cortez Ed., 2001), através da qual reavalia o discurso da ficção nordestina de 30, apontando sua heterogeneidade, mas também mostrando a possibilidade de uma intencionalidade comum aos diversos escritores e discursos. Este discurso de “invenção do Nordeste”, que se compromete com temas e imagens específicas, pode ser visto como um dado importante na compreensão de Manipueira, estréia de Fran Martins não só no conto, como na própria literatura “livresca”.







A sua mais recente edição (Ed. UFC, 1999) mantém, na sua materialidade, os elos da tradição que o próprio subtítulo (“Contos do Juazeiro do Padre Cícero”) demanda. Reproduz-se o fac-símile da ilustração de capa para a modesta primeira edição, em que um rosário se enrola a um punhal, de onde pingam algumas gotas de sangue. Já aqui tem-se a referência a duas idéias exploradas no livro: a religiosidade bastante marcada naquele espaço, sendo traduzida pelo autor em fanatismo religioso; a violência das relações sociais, em que a morte praticada por jagunços, capangas, cangaceiros e matadores é uma constante, algumas vezes corporificando a ambivalência de seu ambiente cultural: violento, porém devoto.
A maior parte dos dez contos enfeixados no volume traz personagens que correspondem a esta referencialidade. De um lado, o leitor depara-se com beatas e beatos, romeiros, tiradores de terços, devotos de toda ordem; sendo que o Padre Cícero está onipresente em todas as narrativas, como a anunciar a permanência praticamente icônica de sua figura no imaginário cultural nordestino, como espaço simbólico de produção de significados e imagens que, pela sua força, alcançam usos no cotidiano dos sujeitos que de alguma forma se utilizam dessa imagem e de seus possíveis significados.
Por outro lado, o leitor encontra Lampião e seus cangaceiros, jagunços “em formação”, “cabras” matadores (porém devotos), coronéis encomendadores de mortes, etc. O autor junta dois fenômenos que geram um amálgama temático polêmico: o fanatismo religioso associado à violência das relações sociais em geral, com incursões pelo imaginário do cangaço, que, por sua vez, volta seus poucos temores para o respeito à ordem religiosa e a seus representantes.
Ao ler estes contos, pode-se até não gostar, por causa da temática, mas o clima de tensão conseguido em cada um dos textos me diz que o contista atingiu algo bem interessante: sugerir que violência e religião passeiam inesperadamente juntas. Quer ideia mais atual?
Miguel Leocádio Araújo

Um comentário:

  1. Veja documentário que fiz sobre Padre Cícero, após dois anos de filmagens. Intitulado: PADIM CIÇO, SANTOU OU CORONEL? Se gostar, comente, avalie e divulgue. Pode acessar através do meu blog:

    www.valdecyalves.blogspot.com

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