[Continuando... - A parte I está aqui]
Em
“Interior”, há duas velhinhas que se recusam a morrer, interpretadas maravilhosamente
por Samya de Lavor e Tatiana Amorim, que captaram as inúmeras velhas que
encontramos em nossa trajetória. As modulações de voz, as inflexões de gestos e
o fraseado utilizado são claramente oriundos de uma profunda pesquisa que redunda
na composição de duas personagens que se dizem avó e neta, mas ora parecem
irmãs ou amigas, cheias de cumplicidade e de arengas. Não se sabe bem em que
idade estão, embora a neta afirme “ser ainda uma menina” aos 97 anos. A outra,
não sabemos ao certo a sua idade. O que se sabe é que, por alguns momentos, até
conflito de gerações surgem.
Foto: Divulgação.
De
início, o andamento da ação e a movimentação de cena são lentos, como que para
mostrar não só a lentidão dos movimentos das velhas senhoras, mas também a morosidade
da passagem do tempo para quem viveu tanto que não sabe mais quantos anos
passaram. E dentro dessa ideia do tempo que passa e da lentidão da velhice, já se
começa falando da morte: uma delas afirma que pensam por aí que ela morreu,
inclusive sua neta. A morte como fim na realidade é o começo para um diálogo
que remete, a partir de um determinado ponto da peça, a tudo o que se tem ainda
para viver. Nesse ponto, as atrizes se transformam, passam de velhas a quase
crianças e perguntam ao público o que ainda se tem para viver no futuro. Aqui,
pode-se dizer que “Interior” é uma peça otimista, já que deixa na entrelinha a
ideia de que nada se acaba com a morte, mas que pessoas e coisas podem viver
eternamente na memória e nos registros materiais em que essa memória encontra
lugar: fotografias, músicas, nomes escritos em pedaços de papel.
Inicialmente, as atrizes usam belas máscaras
(concebidas por Yuri Yamamoto e confeccionadas por Deyvson Freitas – se eu
estiver enganado, me perdoem!), que representam a expressão das velhas de modo a
criar uma ambiência e uma figuratividade para fazer o espectador mergulhar
nessas imagens de velhas que Samya e Tatiana encarnam. Mesmo sem as máscaras,
logo depois, as atrizes assumiam, pela riqueza de expressões faciais, as
figuras das velhas; e depois impressionam quando se despojam das personagens
para falar, cantar e agir como as jovens que são.
Foto: Estúdio Pã - Henrique Kardozo.
Os
vários objetos de cena ajudam a fazer os assuntos irem surgindo com a
naturalidade de um texto bem estruturado. Assim, surgem pedaços de bolo,
sacola, bolsa, fotografias, sacos plásticos, etc. Aliás, umas das cenas mais
significativas da peça é uma briga por sacos plásticos, que não só é engraçada
como também tem sua graça e beleza pelo colorido que deixa a cena. A presença de
flores no cenário e no figurino dá um colorido que remete aos festejos de
cidades de interior e seus enfeites ou aos vestidos de chita tão comuns em
festas juninas de antigamente e na própria indumentária das pessoas em seu dia
a dia. As fazendas estampadas dos vestidos das velhas senhoras parecem
querem dizer a quem as observa: somos primaveris, cheias de graça, de belezas
escondidas.
A
iluminação do espetáculo (do próprio diretor, com projeto iluminotécnico de
Josué Rodrigues) potencializa a cena. Quando a luz esmaece ou se apaga, muda-se
o tema da conversa, muda-se o foco do texto [a não ser que eu esteja enganado,
pois não consegui anotar muitas mudanças de luz, que são rápidas]. Nesse tocante,
Yuri Yamamoto é conhecido por ser um diretor que preza por esses elementos e
entende uma peça como uma obra uma, em que cada detalhe tem uma função. Yuri
tem uma visão de conjunto aliada a uma sensibilidade inteiramente sua – fatos que
podem ser facilmente evidenciados por outras montagens recentes do grupo, a
exemplo de “A mão na face”, com sua meia luz, que ora cresce, ora esmaece, à
medida que elementos de tensão se intensificam ou se resolvem; ou em trabalhos
de direção para outros grupos, como “Caio e Leo” (texto de Rafael Martins), do
Outro Grupo de Teatro, cujos aspectos climáticos são conseguidos por uma finíssima
iluminação, uma sonoplastia precisa e uma trilha sonora adequada aos sentidos
de certas passagens do texto.
O
espetáculo “Interior” se constitui como uma homenagem “aos artistas e à cultura
do interior” (como diz o programa da peça) e, dessa forma, incorpora elementos
de diversas manifestações artísticas ainda bastante vivas nas cidades do
interior do Ceará e de outros estados, o que confere uma nota de celebração à
arte e aos artistas, mas também celebração ao público, que vê aquilo tudo
fascinado e feliz, com seus afetos despertados de forma catártica, função do
teatro desde tempos imemoriais, como revela Aristóteles em sua Poética,
ao falar do alcance da tragédia entre os gregos. “Interior” é um desses
espetáculos que poderia ser fixo do Grupo, fazer parte do repertório permanente
do Bagaceira.
Em
dado momento da encenação, as personagens perguntam a pessoas do público
escolhidas aleatoriamente: o que você estará fazendo daqui a 50 anos? Algumas
pessoas respondem sobre sua vida pessoal, sobre o futuro, sobre a morte. Eu
responderia: Daqui a 50 anos, gostaria de poder estar vivo para rever esse
espetáculo; se possível, realizado pelas mesmas pessoas, com a mesma energia e
a mesma alegria com que se apresentam hoje.
Miguel Leocádio Araújo
[Obs.: Este vídeo da
peça está disponibilizado no canal de YT do Grupo Bagaceira. Apesar de ser
interessante ver o vídeo, para quem não mora em Fortaleza ou não pôde ir ver a
peça, nada substitui a experiência de estar ali, vendo de perto tudo isso que o
vídeo aponta como acontecimento em cena.]
Fiquei emocionado ao ler seu texto sobre a peça, um olhar sensível e etremamente delicado. Achei lindo você ter levado sua avó, foi um momento bem bonito. Muito obrigado pelas palavras. Grande abraço!
ResponderExcluirYuri Yamamoto
Yuri Yamamoto, é sempre um prazer ver os espetáculos do grupo. Mais ainda ler sua mensagem por aqui. Abraço.
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