O
trabalho com a luz é elemento que colabora para a construção da narrativa de
“Caio e Léo”. Um dos momentos mais climáticos da peça ocorre pela formação de
sombras na parede de fundo do palco, enquanto no centro do palco se dá uma cena
de intensa intimidade e tensão erótica entre os personagens: o público vê
projetados os corpos dos atores da cintura para baixo, numa sugestão de
erotismo bastante plástica. Nesse sentido, é possível que a direção de Yuri
Yamamoto tenha intencionalmente dialogado com as artes visuais – não se deve esquecer
que um dos personagens é fotógrafo, ou seja, já há uma abertura no próprio
texto de Rafael Martins a esse diálogo. A própria luz do espetáculo remete ao
universo do fotógrafo Léo; as várias direções e intervalos em que a iluminação
ressalta ou se esmaece parece querer nos lembrar flashes de uma câmera
selecionando o que deve ser captado pelo olhar.
Outro
momento plástico é quando Caio, empunhando um foco de luz, movimenta-se com um
boneco, ele mesmo, afinal – quase numa performance solo de Ari Areia –, também
com um trabalho de iluminação muito sugestivo (porque poético): a ideia de
pequenez e de solidão confirma o modo como a trajetória de Caio começa: em
solidão e silêncio diante da luz que o atravessa. Isso se assemelha ao trecho
da distribuição de carros nos estrados que servem como palco, à maneira de um
artista visual começando a montar uma de suas instalações: na cena, a ideia de
perder-se e perder um objeto é mote para se notar que Léo é o contraponto de
Caio, mas já relativizando-se esse contraponto. O fotógrafo leva a vida aos
saltos, enfrentando os riscos, lançando-se ao desconhecido; no entanto, ele
também procura a estabilidade do amor. Já o especialista em planejamento leva
uma vida onde só deve haver espaço para a certeza e a previsibilidade; no
entanto, ensaia outra posição para si e já admite correr riscos. A influência
do amor e do desejo opera mudanças no comportamento dos personagens.
Cada
elemento da montagem de “Caio e Léo” está carregado de sentido. Um exemplo
disso é o fato de a ação transcorrer predominantemente em cima de estrados que representam um píer à beira-mar, mas também outros espaços. A simetria desse objeto de cena
remete ao cartesianismo de Caio, aos seus caminhos bem traçados, aparentemente
sem espaço para quebras ou desvios; enquanto o jogo de iluminação do espetáculo
remete ao fotógrafo, como já mencionado. Inclusive, a inversão da direção da
luz (ora de cima para baixo, ora de baixo para cima) é algo que me pareceu
dividir as cenas, mas também as experiências dos dois rapazes. Parece que a luz
que vem de debaixo dos estrados – nos intervalos entre as cenas – tenta
sublinhar a reorganização da vida e os vazios entre as falas, que por sua vez
apontam para a necessidade de se preencher esses vazios com as falas de um amor
em construção, desenvolvendo uma paixão cada vez mais difícil.
Por
outro lado, os sons que permeiam a cena remetem também ao sonho de Léo, no que
há de captação do vento, já que o barulho do mar pontua em vários momentos. Ao
mesmo tempo, a trilha sonora – por favor, produção, divulgue as músicas que
estão na peça! – compõe um clima de delicadeza associada à possibilidade da
realização do amor, mas também de melancolia, o que cria, para o espectador, no
meio do espetáculo, uma dúvida se o amor se efetiva ou não.
Nas
duas apresentações que vi, os efeitos são um pouco diferentes. No Teatro do
Dragão do Mar, tem-se a impressão de maior efeito visual, em alguns momentos,
pela própria estrutura do palco, mais amplo. Já no Teatro Universitário, tive a
impressão de maior proximidade com o público, algo condizente com o intimismo
do próprio texto. Nas duas apresentações, os atores cumpriram com sensibilidade
os seus papéis, nas modulações de voz, na contenção dos gestos e na
expressividade própria de quem vive outras vidas. Fiquei pensando: atores tão
jovens e já tão expressivos... Os dois em cena me lembraram uma música do Suede
(“The wild ones”, não sei por quê. Depois de ambas as apresentações, fui ouvir
essa música pensando na peça...). Incluo autor, diretor e artistas da técnica do Outro Grupo de Teatro
entre esses “wild ones” que fazem sonhar. “Tem coisas que, mesmo que a gente
não veja, elas existem”, diz Léo. A beleza, a gente vê e ouve. Muito
nitidamente.
“Caio e Léo”, no Teatro
Universitário, Avenida da Universidade, 2210, Benfica, Fortaleza, durante todo
o mês de julho de 2014, aos sábados e domingos, às 19 horas. Texto de Rafael Martins.
Direção de Yuri Yamamoto. Com Ari Areia e Tavares Neto.
Miguel Leocádio Araújo
P.S.: Não sou crítico
de teatro, nem jornalista. Só escrevi sobre uma peça de José de Alencar (“O Rio
de Janeiro – Verso e reverso”), para uma publicação acadêmica. Mas gosto de ler teatro e ver peças por aí. Apenas me
arrisquei a escrever sobre um espetáculo que me fez ficar pensando na vida...
Excelente... As músicas, a iluminação, o cenário, a forma com que foi conduzido...contribuíram de forma expressiva para as falas, riquíssimas, ficarem ainda mais reflexivas, tocantes... Suas percepções, paralelos também são muito enriquecedores....amei assistir ao espetáculo e ler seus textos depois...parabéns a todos!
ResponderExcluirObrigado, Jamili, por comentar. Que maravilha que você viu a peça. Esse espetáculo é bacana demais, cheio de nuances e entrelinhas, o que torna a experiência de assisti-lo ainda mais instigante. Pena que eu não fui no mesmo dia que você para comentarmos a montagem depois...
ExcluirPodemos repetir próximo fds!
ExcluirPodemos sim, inclusive tem alguns alunos da FECLESC interessados em vir a Fortaleza para ver o espetáculo.
ExcluirUm olhar sensível sobre nosso trabalho, lindo o texto, adorei tuas impressões sobre Caio e Léo. Muito obrigado.Abraço!
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ExcluirYuri Yamamoto, fico honrado e feliz com seu comentário. Acompanho seu trabalho como diretor há algum tempo. Seu trabalho como diretor é uma das coisas que faz essa cidade pulsar. Obrigado. Abraço.
ExcluirAh, quanto a trilha, são músicas da banda MOGWAI.
ResponderExcluirSegue link da faixa final:
http://youtu.be/luM6oeCM7Yw
Mogwai!!!!! Eu devia ter imaginado. Obrigado pelo link!!!
ExcluirMiguel, sou o autor da peça. Não te conheço, mas fiquei impressionado com a precisão do seu olhar, com a sintonia com a obra, com a capacidade de perceber as vontades dos criadores... E também com a qualidade de sua escrita. Muito obrigado! É raro, inclusive entre críticos, alguém que faça isso com a profundidade e competência que você fez. Parabéns. Ficaria muito feliz se você assistisse a outro espetáculo de texto meu que está em cartaz. Chama-se "A mão na face". Abração.
ResponderExcluirRafael Martins, me sinto honrado demais com seu comentário e pelas palavras encorajadoras. Gosto demais de teatro, mas a falta de metodologia (minha) acaba impedindo que eu escreva mais sobre o que vejo. Vontade dá, porém o pensamento é volátil e a palavra necessita de disciplina para se manifestar. Pelo menos no meu caso. Eu já vi "A mão na face" uma vez no Teatro do SESC (Iracema). Quero ver outra vez nessa nova temporada. Escrevi notas sobre o espetáculo, mas não cheguei a estruturar um texto a respeito. Foi outro espetáculo que me impressionou. Abração.
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