Não
precisei ler uma biografia mal escrita ou parcial, produto de um ghost writer, cheia de meandros e
atalhos para impressionar e vender; apenas mais um best seller. A biografia de ontem li com os olhos, ouvidos e todos
os sentidos, incluindo aí o coração. Tudo pela boca da própria biografada. Aos
92 anos de vida, sobe ao palco uma diva de nome Abigail Izquierdo Ferreira,
filha do não menos talentoso Procópio Ferreira e de outra artista, a espanhola
Aída Izquierdo. Conhecemos a artista por seu nick Bibi, Bibi Ferreira. Talvez parasse por aqui, pois assim
deixaria de passar a escrever sobre o óbvio, o que todos conhecemos de uma
mulher cujo nome é sinônimo de talento, audácia e vida. Os 92 anos não a
impedem de ser mais lúcida, transparente, autêntica, atual e – pasmem! – mais atenta
ao mundo do que muitos jovens recém-saídos de nossas escolas e universidades.
Bibi é
expressão de vida, de juventude, de respeito e preocupação com primor e
qualidade artística, estética, ética. Com sua performance, ela nos salva da
mediocridade do cotidiano, do urbano rápido das redes e nos faz adentrar em um
universo biográfico dos mais originais; um universo tão vívido, que insiste em
se atualizar e ir contra os usuais estereótipos de velhice e juventude. Vejo
como muitos de nós somos velhos e como poderíamos com ela aprender a ser jovens,
a nos desvencilhar de valores tacanhos, que nos são impostos e nos impedem de
ir além, de transcender limites.
É como
digo: “Se no Brasil houvesse somente Bibi Ferreira, esse seria motivo
suficiente para ter muito orgulho de ser brasileiro”.
O espetáculo
de Bibi não é apenas um concerto, mas um passeio sumarizado por si mesma e seu
companheiro de palco, maestro que rege bela orquestra, dando à apresentação
desse resumé existencial força e fio
condutor. O epicentro dos acontecimentos gira em torno dos seus doze, treze
anos simbólicos, sempre evocados ao se referir a suas memórias. Sejam esses
doze ou treze anos no século XVII ou XX, eles sintetizam momentos cruciais de
sua história de vida e de sua arte, que se confundem e se mesclam. Vê-la ser
conduzida ao centro do palco por seu diretor, que também participa, em parceria
de uma chanson de Piaf, revela a
fragilidade física de quem já se aproxima do século de vida, mas também evidencia
a força de quem, com voz jovem e afinada, nos faz esquecer esses limites
impostos a um corpo que se ousa elegante e afável – e por isso se deseja
abraçar, acalantar e proteger. Uma fortaleza revelada na memória impecável, nos
sonoros registros que levariam à inveja jovens e outros seres cantantes.
Bibi
ainda me prestou um serviço cultural ao conectar, por meio de seus traços biográficos,
o canto em uma Hollywood remota ao musical brasileiro do qual foi precursora, a
compositores e cantores brasileiros originais, de quem foi amiga, contemporânea
e intérprete, a músicas do rádio, a ângelas, elisetes e noéis, mas também a
gotas d’águas de chico. Nos deleita com arte, ao colocar nas óperas, adonirans,
caymis, nasser e soares só para dar alguns exemplos. Não faltou ao show uma
deixa à bossa nova e ao seu cativo culto à Piaf, que encarna com esmero e
perfeição e de quem se confessa admiradora na arte de cantar e na arte de
viver: “– Edith conseguiu um marido com a metade de sua própria idade, o que
não ocorreu a mim. Era uma mulher intensa no amor, inclusive em seu sentido
prático...” Bibi é a prova, de que a libido não tem idade, não morre, quando
não se quer.
Nesse
sentido, essa viagem aos 92 anos por sua história é também uma viagem pela história da
arte dramática e da música no Brasil e – por que não? – no mundo. O melhor:
nada disso é sua pretensão, tudo isso é meu desejo, que por ela foi despertado através
de seus despretensiosos sinais nessa hora de inefável companhia de uma grande
dama universal.
Talvez
tenha sido esse um dos maiores privilégios que pude ter neste ano de 2014, o de
compartilhar das memórias vivas, sobre um palco, de uma deusa, que vem e nos
salva do óbvio e nos leva ao êxtase, sem sequer saber que é capaz de tudo isso.
Quiçá por isso tive de me sensibilizar tanto e até ensaiei chorar em certos
momentos do seu show, porque testemunhei como da fragilidade humana pode-se
obter tanta força e arte para justificar e dar sentido à vida.
Caubi Tupinambá, Teatro Frei Caneca SP, 4 de julho de 2014.
[Caubi Tupinambá é psicólogo, professor da UFC, Mestre em Psicologia pela Universidade de Salzburg-Áustria, Doutor em Psicologia pela Universidade de Giessen-Alemanha, Pós-Doutor, pela Universidade de Madri-Espanha. Entre seus livros publicados, destaco Timor do sol nascente e outras crônicas, Fortaleza, Omni, 2004.]
Caro amigo Miguel
ResponderExcluirObrigado por fazer público o meu texto. Espero que o leitor passe a se interessar pelo belo trabalho da Bibi.
Caubi, é sempre um prazer contar com suas leituras sensíveis do universo cultural que nos circunda. Eu é que agradeço a permissão para postar o texto aqui.
ExcluirPrezados Caubi e Miguel,
ResponderExcluirConfesso que também fiquei encantado, maravilhado e feliz por ter a oportunidade de ler um texto tão sublime e sensível. Desde sempre acompanhei a escrita acadêmica de Caubi, que sempre seguiu uma lógica científica e uma pragmática e exatidão inerentes à sua formação e personalidade. E sempre gostei muito de todos os textos que até já de sua autoria. Mas nesse texto dele sobre Bibi Ferreira, Caubi se nos revela UM outro que chega a ser muitas vezes inacessível, o texto o releva a um estado outro com um desnudamento de uma outra persona. E isso tudo é FANTÁSTICO. E isso tudo é MÁGICO........ Obrigado amigo por nos presentear com esse belíssimo texto.
Abcs,
Marcio, obrigado por ler e divulgar. Tb adorei esse texto do Caubi.
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