A Fortaleza retratada pelos
poetas e cronistas recende a café, flores e chuva, a dos romancistas é marcada
pela ação nem sempre positiva do progresso. Afinal, como a literatura tratou
dos cheiros da cidade?
MEMÓRIA
2
Cantam-se
cantigas
ao
lume do gás; perfume
de
coisas antigas.
(Sânzio
de Azevedo, in: Lanternas cor de aurora)
Nos idos dos anos de 1950, o poeta
Carlyle Martins proferiu uma conferência em homenagem ao centenário do
romancista Pápi Júnior, na qual afirmava que o perfume das rosas do jardim da
casa situada à Avenida do Imperador, onde residia o autor d’O Simas, chegava com a brisa do fim da
tarde às narinas dos passantes. Tal lembrança olfativa remete a um tempo em que
os odores da Fortaleza de antigamente eram rememorados em prosa e verso, como
forma de sedimentar uma cidade afetivamente demarcada pela pena de escritores
que se ocuparam de evocar as dimensões positivas do lugar em que viviam.
Basta abrir o Cancioneiro da Cidade de Fortaleza, organizado por Artur Eduardo
Benevides, para verificar que os seus aromas, captados pela poesia, aparecem de
maneira discreta, como a sinalizar a própria discrição deste que, dos cinco
sentidos, parece ser o mais inesperado e o que mais se esconde, diante da força
plástica da visão, do poder encantatório ou ensurdecedor dos sons que inundam
nossa audição, dos sabores proustianos das lembranças boas ou más para o nosso paladar
ou da forma mais concreta de sentir as coisas, o tato.
Fruindo a poesia urbana do Cancioneiro, é possível reencontrar as “praças,
com teus fícus-benjamins ébrios de clorofila” (Aluízio Medeiros) ou um certo
odor de alegria, de quando “paira no ar um perfume de mato,/ Um cheiro de areia
molhada...” (Edigar de Alencar), de quando chovia esfriando o chão ainda
arenoso de outras épocas... Misturem-se essas sensações com o cheirinho doce de
café, ao se passar pelas quinas da Praça do Ferreira, em princípios dos anos
1890, e pensa-se imediatamente na vontade de fabricar um pão espiritual para
complementar o incorpóreo aroma exalado do Café Java...
Aliás, em algumas crônicas de Milton
Dias, o cheiro do café pontuava as ruas de Fortaleza, inclusive quando o
cronista afirmava estar passeando em fim de tarde, o que lembraria o clima do
sertão e da convidativa merenda oferecida pelas casas das famílias de outrora,
demonstrando que o provincianismo de certos aspectos da Capital nem sempre era
visto de forma negativa.
No entanto, nem tudo era flor ou café ou
mar naquelas lembranças poéticas de uma cidade a ser tragada pelo progresso,
sempre alerta para obrigar nossos sentidos a mudarem de uma nova experiência
para outra, inclusive as olfativas.
Nos romances que tomam Fortaleza como
cenário para seus conflitos, aparecem registros menos agradáveis, fazendo-nos
franzir o nariz diante da possibilidade de sentir o que não se quer. Em A Normalista, de Adolfo Caminha, por
exemplo, aparece Romão, o responsável pela limpeza pública, que carregava na
cabeça baldes cheios de dejetos, empestando o ar, como se já não bastasse o
calor abafado que concentrava odores indesejáveis de um saneamento público com
muito ainda por fazer. Já em A fome, de Rodolfo Teófilo, Fortaleza aparece
fétida, por causa dos cadáveres das centenas de retirantes que morriam, vítimas
da varíola ou qualquer outra enfermidade, nos abarracamentos de ajuda aos
desvalidos vindos do interior ou mesmo nas coxias das ruas. Ali permaneciam até
que os responsáveis pelos sepultamentos viessem recolhê-los. Assim, “um cheiro
de carniça empestava toda a rua”... Mas era tempo de seca... E a situação
tirava qualquer possibilidade de bem-estar e beleza, muito mais na prosa do que
na poesia. É claro que estes romancistas adotaram o naturalismo como estética;
e ressaltar criticamente o que havia de negativo na sociedade, em alguns casos,
fazia-os esquecer o que havia de bom ou pitoresco, como o perfume das moças
passeando no Passeio Público, as exalações dos incensos nas igrejas locais ou,
mesmo, a catinguinha do estrume deixado para trás pelos burros puxadores de bonde, itens
de afeição representados em outras obras, sobretudo dos cronistas.
É que naquele tempo as pessoas também se
esqueciam das coisas, como hoje. E não é difícil imaginar que a própria saudade
um dia também seja esquecida como um aroma de água de colônia que já se evolou
no ar, porque aqui o vento às vezes é forte.
E se você pergunta a qualquer um: “Qual
cheiro mais lembra Fortaleza?”, em geral a pessoa fica pensando, obviamente a
querer recordar um cheiro bom. Talvez tenha sido esse sentimento nostálgico,
que parece não saber responder qual a melhor memória olfativa da cidade que
tenha levado Jáder de Carvalho a escrever: “Tu não possuis, ó lírica cidade,/ O
perfume do tempo, o antigo aroma/ Que é mesmo a alma dolente da saudade”, uma
tradução poética do sentimento pelos odores do nosso lugar.
P.S..:
Este texto foi escrito para o aniversário de Fortaleza e publicado num dos
cadernos de uma série especial (e maravilhosa) intitulada “Fortaleza – Os sentidos
da cidade”. Este “Narinas abertas para a cidade” foi publicado no caderno sobre
o “Olfato”, no dia 17.04.2009, uma sexta-feira. Hoje é segunda-feira,
13.04.2015, aniversário de Fortaleza, e republico o texto com algumas
alterações. É o meu modo ambivalente de dizer como gosto dessa cidade.
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