Um mito não se faz da noite para o dia. E
há certos mitos que insistem em contrariar as normas. É o caso de Clarice
Lispector, que foi mitificada por uma multidão de leitores e muitos críticos
que leram a sua obra (e por vezes também “leram” a sua vida), construindo
sentidos ligados ao mistério, ao místico e ao filosófico – para ficar apenas
com algumas vertentes –, possibilitando um fenômeno curioso, quando se trata de
divulgar nomes da literatura brasileira: o fenômeno da circulação nas redes
sociais, por meios de citações diversas.
Algumas das citações atribuídas à CL
encontradas nas redes sociais vêm da obra da própria escritora; outras são
insistentes atribuições de frases avizinhadas da autoajuda, que, para receberem
um verniz intelectualizado (possivelmente na tentativa de minimizar os
preconceitos de que a autoajuda é alvo), basta colocar um nome “de peso”.
Talvez Clarice seja umas das campeãs de frases de efeito e lições para o bem
viver entre os escritores que circulam na internet à revelia de suas próprias
obras, o que tem irritado alguns que reagem criando os “contraposters” (se é
que podemos chamar assim), nos quais a escritora, mal humorada, aparece
rejeitando que tenha afirmado tantas frases que lhe são atribuídas, como
decalque incômodo.
Curiosamente, Lispector se posicionou
contra rótulos que lhe eram atribuídos. Em Água
viva (1973), por exemplo, ela afirma que, ao escrever esse “livro”, estaria
criando outra “coisa”, uma ficção, pois gênero literário não a pegaria mais. Ou
seja, as leituras que eram feitas no sentido de analisar a obra da autora pelo
ponto de vista da estrutura dos gêneros literários (algo comum entre os
críticos e professores universitários dos anos 70) provocavam nela uma espécie
de fuga ao estabelecido e ao petrificado, numa busca pelo fluido, pelo não enquadrável.
Na sua trajetória, Clarice não cansou de
romper as fronteiras dos textos. Muitas de suas crônicas, por exemplo, foram
transformadas em contos ou em trechos de romances; assim como trechos de
entrevistas, contos e passagens de romances foram parar na coluna semanal de
crônicas que ela manteve de 1967 até 1973 num jornal carioca.
Aliás, a descoberta desse trânsito de
escritas fez com que pesquisadores, capitaneados pelas editoras, tenham
organizado coletâneas de textos diversos de Clarice, oferecendo ao público uma
parte até bem pouco tempo desconhecida de sua obra. Foi nesse contexto que
surgiram livros que reúnem textos publicados em colunas femininas escritas
entre os anos 50 e 60 para três jornais diferentes. Além disso, saíram livros
que resgatam inéditos esparsos, desde anotações sobre seus filhos até
entrevistas em que ela exercia o ofício de jornalista de modo inteiramente
único, entre o despojado e o tímido a um só tempo.
Como se não bastasse, de vez em quando,
alguma revista literária estampa a imagem de Clarice em sua capa, apontando
para o fato de que ela é sempre solicitada pelos leitores, que não se conformam
com a leitura da obra. Eles querem mais... Não à toa, existem três grandes
biografias em circulação, sem contar os pequenos livros de Olga Borelli e Berta
Waldman que traçam perfis da escritora.
Tudo isso ainda parece pouco. Alguns
leitores (e talvez muitos “não leitores”) de Clarice Lispector ainda preferem
uma imagem específica dessa escritora que insistia em não querer ser uma
“profissional”. À revelia das redes sociais e dos e-mails com supostos textos
seus, ela resiste. A leitura de sua obra ainda é uma experiência da qual
ninguém sai ileso. Assim são certos mitos...
P.S.: Este texto me foi pedido pelo Jornal O Povo há algum tempo atrás, mas nunca foi publicado. Reencontrei-o esses dias, fazendo a limpeza no computador. Reli e remendei esse texto, com uma certa vontade de divulgá-lo hoje (28.08.2014), pois, coincidentemente, no dia 26.08.2014, assisti a uma palestra de Elisama Almeida de Oliveira, pesquisadora do Instituto Moreira Salles, no Espaço O Povo de Cultura e Arte, em que comentou a respeito do acervo de Clarice naquele instituto e do site criado pelo IMS contendo um bom material sobre Clarice Lispector.
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