“A donzela
desprezada” faz parte da “trilogia de dramas urbanos”, como denominou Marcelo
Costa. A peça foi provavelmente escrita em 1964 pelo cearense Eduardo Campos e
encenada pela primeira vez em 1995, juntando-se às conhecidas “O Morro do Ouro”
e “A Rosa do Lagamar”, todas ambientadas em Fortaleza.
Quando conheci
o texto, por meio do livro Três peças
escolhidas (Fortaleza: Edições UFC, 2008), achei o título estranho, meio
fora de tempo, quase como se colocasse o dramaturgo cearense entre aqueles de
uma longínqua tradição oitocentista. É que o tal título tem um sabor de
antiguidade, pelo fato de trazer o vocábulo “donzela”, elemento que nomeia o
texto e impulsiona a ação. Um outro fator que lhe confere um perfume de passado
é o fato de tratar de uma preocupação bastante comum nas narrativas de outros
tempos, em que o temor de permanecer solteira (ou, pior ainda, o pavor de ser
desprezada por aquele a quem ama) causava às personagens femininas um
sentimento de derrota, tal como acontece à Florzinha (do romance O sertanejo, de José de Alencar) ou à
também Florzinha (personagem de Aves de
arribação, de Antônio Sales).
Por outro
lado, há nesse título um certo tom anedótico. Inicialmente o próprio Eduardo
Campos desprezou sua “filha”, guardando a peça nas suas gavetas por mais de 30
anos; ele que estava acostumado a acumular o sucesso de crítica e público com a
densidade de alguns de seus dramas. De fato, dos trabalhos que compõem Três peças escolhidas, “A donzela
desprezada” é aquele que tem mais cenas que provocam o riso, não deixando, com
isso, de ser um drama.
A personagem
Amelinha é a rainha de um dos partidos de uma quermesse e vivia às voltas com a
cartomante Lolita, para saber se seu amor por Edmundo vingaria. Na dúvida,
inicia-se uma sucessão de peripécias encabeçadas por policiais corruptos e
jornalistas em busca da notícia escabrosa de última hora. A dúvida, no final,
se revela como um erro de interpretação de Amelinha, a moça ingênua que se
deixa levar pela palavra e pelo conselho de qualquer pessoa desconhecedora da
verdade de sua condição, quer seja sua mãe (Valdelice), o Agente da polícia, o
Delegado, o jornalista (Benedito) ou qualquer outro que julgue contribuir para
minimizar os males imaginariamente forjados, para obrigar Edmundo a casar com a
donzela, que, por sinal, dizia-se não mais tão donzela assim...
Nesse sentido,
o tom de crítica alcança as raias da ferocidade, pois ninguém escapa de ser
oportunista e mentiroso. A imprensa é representada como uma ave de rapina, que
perde o interesse pela presa tão logo tenha arrancado o que interessa para uma
reportagem bombástica que acelera a venda de jornais. A polícia é representada
como instituição que, em vez de colaborar na solução de problemas reais, incita
à mentira e à farsa, desde que tenha sua imagem pública bem cotada naquela
imprensa. O oportunismo do querer aparecer a qualquer custo, mesmo que para
isso tenha que se manchar a própria reputação, comparece nas figuras de
Valdelice e Amelinha de forma ambígua e oscilante. Como drama colateral, surge
ainda Lolita, uma cartomante viciada em remédios que acaba falecendo,
provocando a mudança de interesses da parte de jornalista e policiais para o
fato “quente” do dia. E o suposto drama da donzela desprezada se apaga para dar
lugar a outro.
Esse enredo é
mostrado com uma alternância de cenas mais sérias e outras quase burlescas, com
diálogos que mostram a podridão do ser humano ao transformar verdade em ficção
e vice-versa; nas palavras de Marcelo Costa, trata-se do texto de Eduardo
Campos mais distanciado do real, provavelmente pelo fato de o dramaturgo
carregar nas tintas provocativas e críticas do comportamento humano.
Nunca vi uma
encenação desse texto, fico somente imaginando como seria. Alguns elementos do
texto ainda me soam bem atuais...
Vi o título do seu post no meu painel do blogger e logo fiquei curiosa - confesso, nunca li nada (nem tinha ouvido falar :/ ) do escritor cearense Eduardo Campos (na verdade, com esse nome só ''conhecia'' o tal político falecido haa), gostei do enredo, principalmente por mesclar temáticas tanto ''passadas'' -da sociedade daquele tempo- com temas que refletem na sociedade atual (como os policiais corruptos e jornalistas... por ex.), de uma forma ou de outra.
ResponderExcluirPois é, Lizandra. Conheço o dramaturgo há bem mais tempo do que o político falecido. E, por conhecer relativamente bem o dramaturgo (que cheguei a entrevistar), tornei-me leitor de seus outros textos: contos, romances, ensaios... Vale muito a pena conhecer. Há outros textos dele para teatro que são muito bons.
ExcluirOlá, Miguel. Sua análise dessa peça de Eduardo Campos traz, além do que nos apresentou por sua escrita, alguns implícitos interessantes, como o fato de a imprensa ter tendência natural àquilo que provoca, não poucas vezes, a comoção das pessoas: a miséria humana, o sensacionalismo.
ResponderExcluirBem antes disso, sua apresentação da maneira como o dramaturgo revela a vida social por meio do que envolve a personagem principal deleita o leitor, por ver no crítico visão plena para a exposição do drama do autor.
Um grande abraço.
Olá, Sérgio. Obrigado pelo seu comentário tão preciso quanto arguto. Realmente, tem me impressionado nos últimos tempos a maneira vil como a imprensa trata os fatos não só da nossa vida cotidiana, mas também os fatos da trama política recente. No entanto, o texto do dramaturgo cearense me fez lembrar que isso não é de hoje nem de ontem; vem de muito longe e foi representado em "A donzela desprezada" de forma especialmente evidente. Grande abraço.
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