Em A casa dos benjamins, de Socorro Acióli,
uma menina, Flora, conhece uma simpática senhora. Depois vem a saber: é Rachel
de Queiroz. Juntas, visitam a hoje famosa casa onde a escritora cearense esboçou
sua obra inaugural, O Quinze.
Magicamente, uma Rachel idosa conduz a criança às imagens do passado, em que
das palavras surgem cenas que se materializam no ar, compondo a atmosfera
sofrida de um dos romances fundamentais da ficção nordestina da chamada Geração
de 30.
A metáfora
criada por Socorro Acióli não poderia ser mais apropriada: Rachel se
aproximando da infância, tendo a literatura como vetor do trânsito entre
presente e passado, entre o adulto e a criança. Este aspecto atravessa toda a
obra da escritora, ora como uma espécie de reconstrução da experiência de
formação da personalidade, ora como uma construção do espaço afetivo para
elaborar espantos diante da percepção das coisas e do mundo.
É nesta
perspectiva que se pode entender a “tangerine-girl”, personagem-título de um
dos contos mais belos de Rachel. Nele, uma menina, em lances ágeis de uma
imaginação irrequieta, vivencia sua primeira experiência com o outro, com o
estranho (materializada pelo contato com os militares americanos e sua aeronave),
no qual deposita sua possibilidade de emoção (a fantasia de estar sendo
cortejada por um enamorado marinheiro), encontrando porém o desapontamento,
fruto do experienciar um universo que não é seu.
Em As três Marias, a descoberta das coisas,
da amizade e das relações sociais, nem sempre pautadas pela sinceridade ou pela
cordialidade, encontra no espaço da escola o ambiente para a fabricação dos
escudos que as futuras mulheres precisarão ter para impor sua subjetividade. E
a criança, neste caso, não está livre das mazelas frequentemente atribuídas aos
adultos, fazendo com que a narradora em dado momento afirme: “As crianças são
ferozes, severas e absolutas como selvagens. Elas, menos que ninguém,
compreendem e amam a inocência.”
Talvez este
amor à inocência tenha colaborado na construção dos personagens crianças que
aparecem de soslaio na secura de O Quinze,
famintas, tristonhas, o olhar distante para um mundo no qual não se tem ânimo
nem para fazer traquinagens. Centrado na experiência do sofrimento da fuga e do
desvalimento, todo e qualquer personagem se apequena diante da magnitude do
flagelo da seca, nivelando adultos e crianças à condição de arremedos de
pessoa. Tal orientação romanesca não foi, de resto, individualizada na obra de
Rachel, mas estava na maioria dos romancistas nordestinos de 30, que
encontraram na infância uma confluência temática pouco repetida na literatura
brasileira: Graciliano Ramos e os meninos de Vidas secas; Lins do Rego e seus meninos de engenhos; Jorge Amado e
seus meninos capitães de areias, de ruas e ladeiras... Transfere-se para a
prosa, assim, a experiência acumulada pela poesia das reminiscências de
infância, sedimentada desde o Romantismo (quem não lembra “Meus oito anos”, de
Casimiro de Abreu?) até a infância vertida em tintas modernistas de Bandeira e
Drummond.
A infância
comparece de forma variada na obra de Rachel, não constituindo uma imagem
fixada rigidamente, mas em função das exigências da própria narrativa. Em Caminho de pedras, o garoto (filho de
João Jaques e Noemi) fala pouco (muito mais com a mãe), mas tem a fundamental
incumbência de comunicar a doença de Noemi ao pai. Curiosamente, neste romance,
percebe-se (mesmo que não seja a temática central da obra) a variedade de
experiências afetivas com a criança: ora o afeto domina, ora a repreensão; ora
o menino brinca, sujo e descuidado; ora queda-se absorto diante da mãe acamada
ou das conversas políticas do pai.
Essas
experiências nos dão a dimensão da tentativa de Rachel de Queiroz em compor um
quadro realista da infância na medida em que não se fixa em um modelo único de
comportamento infantil, o que não lhe retira a condição de, como o Daniel de O menino mágico (um de seus livros
infanto-juvenis), poder imaginar que para a criança qualquer mágica é possível.
Porque poder ser criança é a própria mágica.
Miguel Leocádio Araújo
P.S.: Este artigo foi publicado no
primeiro número da revista Letra, do
jornal O Povo e da Fundação Demócrito
Rocha, em meados de 2010, durante as comemorações do centenário de Rachel de
Queiroz. O título original, que ora republico, tinha sido modificado para “Todas
as infâncias da Rachel”, que constou na revista.
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