Há pouco mais
de um ano, falecia Ignez Fiuza. Fui seu professor de “escrever”, como ela
gostava de dizer, de março de 2009 a dezembro de 2015, primeiramente no curso “Minha
vida, minha história – Escrevendo memórias”, oferecido no Espaço Viva da FA7. Depois
o curso desvinculou-se da instituição e ganhou o espaço do atelier de Ignez,
até chegar ao salão de festas do prédio em que a aluna morava, na Praia de
Iracema, em Fortaleza. Junto com ela, um conjunto de pessoas interessadas em
escrever suas lembranças, exercitar a memória e discutir formas de escrever
conforme o modo de ser de cada um. A maioria delas acima dos 80 anos, com muita
disposição para aprender, como a própria anfitriã.
Ignez era uma
pessoa muito vivaz, simpática e dinâmica. Eu já a conhecia de vista do La Bohème,
galeria-bistrô que ficava nas proximidades de onde hoje é o Mambembe [Obs.:
alguns meses antes de partir, Ignez ficou sabendo, com revolta e tristeza, da
derrubada de uma centenária árvore que estava em frente ao Estoril. Ali uma
escora de ferro havia sido colocada para não sacrificar a árvore, a pedido de
Ignez, na década de 80. Ao saber do fato, ela escreveu um texto e publicou-o em
algum jornal da cidade denunciando a derrubada compulsória de árvores na cidade
pela administração municipal.].
Conheci-a melhor
não só pela convivência como também pela leitura dos textos que ela produzia. Esses
textos resultaram no livro “Jogando conversa fora”, que tive a tarefa de
supervisionar como organizador e revisor. O processo durou quase um ano, entre
a decisão de publicar e o lançamento do livro, em fevereiro de 2014. Era nos
encontros para discutir o livro que falávamos sobre outros livros, sobre
formatos, sobre qualidade literária ou a falta desta, sobre ser simples, sobre
se fazer entender, sobre revelar e esconder o que se sabe sobre a cidade, sobre
as limitações de disponibilizar lembranças que parecem interessar somente a si.
Algumas vezes Ignez ficava insegura quanto ao interesse desse livro. E eu
sempre dizia que as lembranças de alguém que circulou em tantas áreas
diferentes na cidade interessam, porque, ao falar de suas experiências, ela fala
da cidade, tanto mostrando as limitações de uma Fortaleza pouco afeita à arte
no momento em que ela iniciou-se com a galeria de arte e o antiquário como
indicando que a mentalidade havia mudado um pouco 40 anos depois – e ela
ressaltava “um pouco”.
O livro de
Ignez é uma conversa. Tem de tudo um pouco: sua genealogia (os Gentil da
Reitoria) e histórias de vida; várias situações envolvendo artistas locais,
nacionais e internacionais; a dureza de ser uma mulher de negócios numa
Fortaleza cuja elite ainda torcia o nariz para a profissionalização da mulher,
sobretudo se ela pertencesse a uma certa camada social; o cenário cultural e
das artes visuais ao longo de décadas de atuação como galerista e curadora
(quando essa palavra não era usada), entre tantos temas que ela desenvolve em
textos muito próximos da crônica e têm a intenção tão somente de expressar
ideias e a memória de um tempo outro.
Na convivência
com Ignez, fiquei sabendo de sua amizade com Tomie Ohtake e sua admiração por
Frans Krajcberg; também presenciei sua finesse, seu bom gosto e esmero em
receber as pessoas que chegavam à sua casa; sobretudo, observei sua
simplicidade no trato com o outro e seu bom humor – e tudo isso está de algum
modo impresso no livro que escreveu. Depois de publicar esse livro, Ignez Fiuza
ainda produziu dezenas de textos, além dos que ela resolveu não editar nesse
livro. Muitos desses textos foram produzidos no curso; outros, ela escreveu
porque sentiu vontade, impulso, inspiração. Coisas de quem descobriu que a
escrita é uma forma de simbolizar a vida e suas vicissitudes.
FIUZA, Ignez. Jogando conversa fora. Fortaleza: Expressão
Gráfica, 2014.
[Essa é minha homenagem à Ignez. Eu, que fui muito mais
aprendiz que professor, lembro com alegria de nossas aulas e de seu alto
astral.]